22º Domingo do Tempo Comum/Ano B

22º Domingo do Tempo Comum/Ano B


Roteiro Homilético cnbbleste2.org.br
1ª LEITURA - Dt 4,1-2.6-8
Dizem os estudiosos que o capítulo quarto é um acréscimo para refazer a esperança do povo no exílio babilônico. Insiste no culto a Javé e a exclusão da idolatria. O perigo era grande; então, a insistência do nosso texto é maior ainda em ouvir e praticar os estatutos e normas decretados por Javé. Não se pode acrescentar, nem tirar nada. Assim foi lembrado na entrada da terra prometida, para que eles pudessem possuir a terra e ter vida. Agora se volta a insistir nos mesmos pontos para refazer os ânimos e as esperanças dos exilados. Os vv. 6-8 insistem na prática da aliança, para que os outros povos reconheçam que Israel é um povo sábio e inteligente. A fidelidade do povo significa aproximação de Deus e alcança admiração dos povos pela justiça das normas e estatutos de Israel. Em outras palavras a grandeza da nação está em se distinguir dos outros pela prática da justiça e fidelidade às leis de Deus.



2ª  LEITURA - Tg 1,17-18.21b-22.27
Leitura da indicação: Carta de Tiago, capítulo segundo, versículos de 17 a 18, 21b a 22 e versículo 27. A carta de Tiago, escrito de caráter sapiencial, reduz toda a lei judaica ao mandamento do amor ao próximo, um amor que exclui qualquer tipo de exploração. Há também a exclusão de uma religião ritualista sem compromisso concreto com os empobrecidos. Os vv. 17 e 18 mostram primeiro que qualquer dom precioso e qualquer dádiva perfeita vêm de Deus e ele não muda. Quer dizer, só Deus é o autor do bem que conduz à vida, nada de mal vem dele. Somo gerados por meio da Palavra da verdade para sermos as primeiras dentre as suas criaturas. Por isso devemos acolher docilmente a Palavra, afastando-nos de toda a imundice e sinal de malícia. Somos chamados a praticar a Palavra; apenas ouvi-la é iludir-nos a nós mesmos. O importante é a prática, pois uma religião pura e sem mácula é socorrer os órfãos e as viúvas em aflição, quer dizer, socorrer os marginalizados e não se deixar corromper pelas coisas do mundo. Assim, o importante é romper-se com as estruturas de pecado.



EVANGELHO - Mc 7,1-8.14-15.21-23
Leitura da indicação: Evangelho de São Marcos, capítulo 7o, versículos de primeiro  ao oitavo, de quatorze ao quinze e de vinte e um ao vinte e três.

A pergunta dos adversários
Fariseus e doutores da Lei saem do centro opressor - Jerusalém - e vão até Jesus para investigar se ele está ou não transgredindo as tradições judaicas. Os vv. 2-4 falam dessas tradições prescritas em Lv 15,11. Por causa do contágio com pagãos, que eram considerados impuros, tudo que se comprava no mercado tinha que ser purificado e não se podia comer sem lavar as mãos. Perceberam que alguns discípulos comiam pão sem lavar as mãos e questionavam a Jesus.

A resposta de Jesus
A resposta de Jesus vai contrapor o lado de fora e o lado de dentro. Citando Is 29,13, ele contrapõe lábios e coração para falar de culto externo e culto interior, tradições dos homens e mandamentos de Deus. Os adversários são hipócritas, eles deturpam o mandamento de Deus com seus próprios ensinamentos e discriminam as pessoas. Para eles todos os pagãos são impuros. Depois Jesus diz claramente que o que torna a pessoa impura não é o que vem de fora e entra na pessoa, mas o que sai do seu coração.


O esclarecimento aos discípulos
Dentro de casa os discípulos pedem esclarecimentos, e Jesus explica mais ainda, declarando puros todos os alimentos (vv. 17-20). Depois diz que as más intenções, que estão dentro do coração do ser humano é que tornam as pessoas impuras. De fato é dessas más intenções interiores que partem as más opções e as más ações. Aqui são enumerados treze vícios como síntese do que o homem é capaz de fazer de ruim.


Roteiro Homilético 1 - Liturgia: Mensagem franciscanos.org
Jesus e as tradições humanas
A melhor coisa, quando se corrompe, vira a pior. Isso acontece com a Lei, dada por Deus a Israel mediante Moisés, quando deixada nas mãos de mestres que lhe desconhecem a intenção originária. A 1ª  leitura de hoje descreve muito bem o alto valor da Lei: um tesouro de sabedoria, que supera as leis e filosofias dos outros povos. Diz direitinho o que é para fazer e para deixar. A Lei servirá para garantir a posse pacífica da Terra Prometida. E mais: servirá como um testemunho de Deus entre as nações, pois qual é o povo que tem um Deus tão sábio?
Esta última frase revela que essas palavras foram escritas, não no tempo de Moisés, mas no tempo em que Israel, novamente, vivia no meio das nações, no exílio babilônico. Para os judeus exilados, a “conversão” à prática da Lei seria o meio para voltar à Terra Prometida e, entretanto, já servia de testemunho entre as nações (cf. a vocação do Servo do Senhor a ser “luz das nações”, Is 42,6; também da situação do exílio). Por isso, era importante observar a Lei da melhor maneira possível, sem nada tirar ou acrescentar, para não obscurecer a palavra divina por invenções humanas.
Para proteger a “árvore da vida”, que é a Lei, os escribas montaram ao redor dela a cerca de suas interpretações, tradições, jurisprudências etc. Querendo protegê-la, tomaram-na inacessível para o povo comum, e ainda a sufocaram na sua intenção principal, que é: ser a expressão do amor de Deus. Para não cair no erro se proíbe uma série de outras coisas, porque “nunca se sabe … “. Traços disso existem ainda no judaísmo atual, onde a cozinha para a carne é separada da cozinha para as comidas com leite, pois poderia acontecer que, sem o saber, a gente cozinhasse carne numa panela com um restinho de leite do mesmo animal, e a Lei proíbe cozinhar um animal com seu leite … O exagero se transformou em critério de boa conduta. Os fariseus inventaram que só os que observavam essas invenções exageradas eram realmente bons judeus. Os outros, que nem conheciam a Lei (e as suas interpretações), eram desprezíveis: os “ignorantes”.
Jesus escandaliza por seu comportamento (evangelho). Se ele fosse um verdadeiro “rabi”, ele deveria, em primeiro lugar, ver se as pessoas com quem lidava eram puras ou não. Pelo contrário: toca num leproso (Mc 2,41), deixa-se tocar por uma hemorrágica (5,27), presta ajuda a uma pagã (7,24-30). Por trás da pergunta por que os discípulos de Jesus comem com as mãos “impuras” (não lavadas), está toda a crítica do farisaísmo à conduta global de Jesus. A resposta de Jesus é violenta: a religião dos fariseusé invenção humana, e não a vontade de Deus, o que ele demonstra com o exemplo dos votos feitos ao templo em detrimento dos próprios pais (7,8-13, infelizmente eliminado da perícope litúrgica). E mais: toda essa questão de puro e impuro é uma farsa, pois o que deve ser puro é o interior, do copo e da gente, não o exterior. A podridão não é coisa de fora que entra na gente, como a comida, que sai novamente e vai à fossa (16-20, suprimido na liturgia!). A podridão está no coração da gente! Assim, Jesus não apenas declara todo alimento puro (19b), restituindo a criação de Deus, que fez as coisas boas (cf. At 10,15), mas ainda ensina ao homem olhar para dentro do próprio coração.
Jesus aqui demonstra espantosa liberdade face às tradições humanas, considerado o ambiente rígido em que vivia: o judaísmo lutando contra as influências estrangeiras, procurando conservar sua identidade, mediante a (exagerada) observância da Lei. Aos olhos dos “bons”, Jesus estava destruindo o povo de Deus. Coisa semelhante acontece hoje. Os que procuram garantir a “identidade”, não apenas dos cristãos, mas da “civilização cristã ocidental”, não admitem nenhum comportamento divergente das normas tradicionais que garantiram sucesso à cristandade. E, contudo, para “restituir a Lei a Deus”, para fazer com que ela seja expressão do amor de Deus, talvez seja preciso me­xer com as tradições esclerosadas e com as estruturas sociais que sustentaram a cristan­dade tradicional juntamente com seu maior inimigo, a sociedade do lucro individual e do ateísmo prático.
O cristão deve sempre ter claro que só a Lei de Deus é intocável; as interpretações humanas, por necessárias que forem, não. Por isso, Jesus reduziu a Lei de Deus ao es­sencial: amor a Deus e ao próximo (nem mesmo o sábado sobrou no seu “resumo” … ). Quando nossas interpretações contrariam a causa de Deus, que é a causa do homem, estamos no caminho errado, no caminho dos fariseus.
E, por falar em vontade de Deus, não basta escutar sua formulação na Lei; é preci­so executá-la. Verdadeira religião não é doutrina, mas amor prático, para com os mais humildes em primeiro lugar; é o que nos ensina a 2ª leitura, de Tiago.
Do livro “Liturgia Dominical”, de Johan Konings, SJ, Editora Vozes


A verdadeira religião
O evangelho nos regala com um dos trechos mais significativos de Marcos: a discussão sobre o que é puro e o que impuro (Mc 7,1-23). Os discípulos se puseram a comer sem lavar as mãos. Mas lá estavam alguns vizinhos piedosos, da irmandade dos fariseus, acompanhados de professores de teologia (escribas), vindos da capital, de Jerusalém. Logo se intrometeram, dizendo que é proibido comer sem lavar as mãos. (Como também se deviam lavar as coisas que se compravam no mercado, os pratos e tigelas e tudo o mais). Mas Jesus acha tudo isso exagerado, sobretudo porque dão a isso um valor sagrado.
Na realidade, a piedade de Israel era relativamente simples. Religião complicada era a dos pagãos, que viviam oferecendo sacrifícios e queimando perfumes para seus deuses, cada vez que desejavam alguma ajuda ou queriam evitar um castigo. Mas a religião de Israel era sóbria, pois só conhecia um único Deus e Senhor. Consistia em observar o sábado, oferecer uns poucos sacrifícios, pagar o dízimo e, sobretudo, praticar a lealdade (amor e justiça) para com o próximo. Moisés já tinha dito que não deviam acrescentar nada a essas regras simples, admiradas até pelos outros povos (1ª leitura). E Tiago – o mais judeu dos autores do Novo Testamento – diz claramente: “Religião pura e sem mancha diante do Deus e Pai é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas dificuldades e guardar-se livre da corrupção do mundo” (Tg 1,27; 2ª leitura).
Mas, no tempo de Jesus, os “mestres da Lei” tinham perdido esse sentido de simplicidade. Complicaram a religião com observância que originalmente se destinavam aos sacerdotes. Clericalizavam a vida dos leigos. Queriam ser mais santos que o Papa! Chegavam a dizer que era mais importante fazer uma doação ao templo do que ajudar com esse dinheiro os velhos pais necessitados. Inversão total das coisas. Ajudar pai e mãe é um dos Dez Mandamentos, enquanto de doações ao templo os Dez Mandamentos nem falam.  Declaravam também impuras montão de coisas. No templo, tudo bem, o bezerro ou o cordeirinho a ser oferecido tem de ser bonito, puro, sem defeito. Mas no dia-a-dia, a gente come o que tem e do jeito como pode. Sobretudo a gente pobre, os migrantes, como eram os amigos de Jesus. Contra todas essas invenções piedosas, Jesus se inflama. Não é aquilo que entra na gente _ e que é evacuado no devido lugar – que torna impuro, mas a malícia que sai de sua boca e de seu coração (Mc 7,18-23).
Jesus quis sempre ensinar o que Deus quer. A Lei era uma maneira para “sintonizar”com a vontade de Deus. E Jesus respeita a Lei, melhorando-a para torná-la mais de acordo com a vontade de Deus, que é o verdadeiro bem do ser humano. Isso é o essencial. O demais deve estar a serviço do verdadeiro bem da gente e não o impedir. A verdadeira sintonia com Deus, a verdadeira piedade é o amor a Deus e a seus filhos e filhas. Práticas piedosas que atravancam isso são doentias e/ou hipócritas.
Mais ainda que a Lei de Moisés em sua simplicidade original, a “religião de Jesus” deve brilhar por sua profunda sabedoria e bondade. Deve mostrar com toda a clareza o quanto Deus ama seus filhos e filhas ensinando-lhes a amarem-se mutuamente. Daí nossa pergunta: nossas práticas religiosas ajudam a amar mais a Deus e ao próximo, ou apenas escondem nossa falta de compromisso com a humanidade pela qual Jesus deu a sua vida?
Do livro “Liturgia Dominical”, de Johan Konings, SJ, Editora Vozes



Roteiro Homilético 2 - Liturgia: Dehonianos de Portugal
Tema do 22º Domingo do Tempo Comum

A liturgia do 22º Domingo do Tempo Comum propõe-nos uma reflexão sobre a “Lei”. Deus quer a realização e a vida plena para o homem e, nesse sentido, propõe-lhe a sua “Lei”. A “Lei” de Deus indica ao homem o caminho a seguir. Contudo, esse caminho não se esgota num mero cumprimento de ritos ou de práticas vazias de significado, mas num processo de conversão que leve o homem a comprometer-se cada vez mais com o amor a Deus e aos irmãos.
A primeira leitura garante-nos que as “leis” e preceitos de Deus são um caminho seguro para a felicidade e para a vida em plenitude. Por isso, o autor dessa catequese recomenda insistentemente ao seu Povo que acolha a Palavra de Deus e se deixe guiar por ela.
No Evangelho, Jesus denuncia a atitude daqueles que fizeram do cumprimento externo e superficial da “lei” um valor absoluto, esquecendo que a “lei” é apenas um caminho para chegar a um compromisso efectivo com o projecto de Deus. Na perspectiva de Jesus, a verdadeira religião não se centra no cumprimento formal das “leis”, mas num processo de conversão que leve o homem à comunhão com Deus e a viver numa real partilha de amor com os irmãos.
A segunda leitura convida os crentes a escutarem e acolherem a Palavra de Deus; mas avisa que essa Palavra escutada e acolhida no coração tem de tornar-se um compromisso de amor, de partilha, de solidariedade com o mundo e com os homens.


LEITURA I – Dt 4,1-2.6-8

Leitura do Livro do Deuteronómio

Moisés falou ao povo, dizendo:
«Agora escuta, Israel,
as leis e os preceitos que vos dou a conhecer
e ponde-os em prática,
para que vivais e entreis na posse da terra
que vos dá o Senhor, Deus de vossos pais.
Não acrescentareis nada ao que vos ordeno,
nem suprimireis coisa alguma,
mas guardareis os mandamentos do Senhor vosso Deus,
tal como eu vo-los prescrevo.
Observai-os e ponde-os em prática:
eles serão a vossa sabedoria e a vossa prudência
aos olhos dos povos,
que, ao ouvirem falar de todas estas leis, dirão:
‘Que povo tão sábio e tão prudente é esta grande nação!’
Qual é, na verdade, a grande nação
que tem a divindade tão perto de si
como está perto de nós o Senhor, nosso Deus,
sempre que O invocamos?
E qual é a grande nação
que tem mandamentos e decretos tão justos
como esta lei que hoje vos apresento?»

AMBIENTE

O Livro do Deuteronómio é aquele “livro da Lei” ou “livro da Aliança” descoberto no Templo de Jerusalém no 18º ano do reinado de Josias (622 a.C.) (cf. 2 Re 22). Neste livro, os teólogos deuteronomistas – originários do Norte (Israel) mas, entretanto, refugiados no sul (Judá) após as derrotas dos reis do norte frente aos assírios – apresentam os dados fundamentais da sua teologia: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel e fez com Ele uma aliança eterna; e o Povo de Deus deve ser um único Povo, a propriedade pessoal de Jahwéh (portanto, não têm qualquer sentido as questões históricas que levaram o Povo de Deus à divisão política e religiosa, após a morte do rei Salomão).
Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab. Pressentindo a proximidade da sua morte, Moisés deixa ao Povo uma espécie de “testamento espiritual”: lembra aos hebreus os compromissos assumidos para com Deus e convida-os a renovar a sua aliança com Jahwéh.
O texto que hoje nos é proposto apresenta-se como parte do primeiro discurso de Moisés (cf. Dt 1,6-4,43). Na primeira parte desse discurso (cf. Dt 1,6-3,29), em estilo narrativo, o autor deuteronomista põe na boca de Moisés um resumo da história do Povo, desde a estadia no Horeb/Sinai, até à chegada ao monte Pisga, na Transjordânia; na parte final desse discurso (cf. Dt 4,1-43), o autor apresenta, em estilo exortativo, um pequeno resumo da Aliança e das suas exigências. Esta secção final do primeiro discurso de Moisés começa com a expressão “e agora, Israel…”, que enlaça esta secção com a precedente: mostra-se que o compromisso que agora se pede a Israel se apoia nos acontecimentos históricos anteriormente expostos… A acção de Deus ao longo da caminhada do Povo pelo deserto deve conduzir ao compromisso.
O capítulo 4 do Livro do Deuteronómio é um texto redigido, muito provavelmente, na fase final do Exílio do Povo de Deus na Babilónia. Perdido numa terra estrangeira e mergulhado numa cultura estranha, hostilizado quando tentava afirmar a sua fé em Jahwéh e celebrá-la através do culto, impressionado com o esplendor ritual e as solenidades do culto babilónico, o Povo bíblico corria o risco de trocar Jahwéh pelos deuses babilónicos. É neste contexto que os teólogos da escola deuteronomista vão convidar o Povo a olhar para a sua história (cf. Dt 1,6-3,29), a redescobrir nela a presença salvadora e amorosa de Jahwéh e a comprometer-se de novo com Deus e com a Aliança.

MENSAGEM

Esse Deus que, no passado, interveio na história para salvar e libertar Israel é o mesmo Deus que agora oferece ao seu Povo leis e preceitos.
Porque é que Israel deve acolher e praticar essas leis e preceitos que Deus lhe propõe? Em primeiro lugar, como forma de gratidão: é a resposta de Israel a esse Deus libertador, que mil vezes agiu no passado para salvar o seu Povo… Em segundo lugar, porque as leis e preceitos do Senhor são inquestionavelmente um caminho que conduz o Povo pela estrada da felicidade e da liberdade. Em qualquer caso, o viver de acordo com as leis e os preceitos de Jahwéh ajudará o Povo a concretizar todos os seus sonhos e esperanças – nomeadamente o grande sonho de se estabelecer numa terra, escapando aos perigos e incomodidades da vida nómada (vers. 1).
Israel deve, contudo, ter cuidado para não adulterar as leis e preceitos que Deus lhe propõe. Há sempre o perigo de os homens adaptarem a Palavra de Deus, de forma a que ela sirva os seus interesses; há sempre o perigo de os homens suavizarem a Palavra de Deus, de forma a que ela não seja tão exigente; há sempre o perigo de os homens suprimirem da Palavra de Deus aquilo que os incomoda; há sempre o perigo de os homens acrescentarem algo à Palavra de Deus, atribuindo a Deus ideias e propostas com as quais Deus não tem nada a ver… Israel tem de resistir a estas tentações: a Palavra de Deus deve ser uma proposta sagrada, que o Povo se esforçará por cumprir integralmente (vers. 2).
Na parte final do texto que nos é proposto, o catequista deuteronomista manifesta o seu orgulho pelo facto de Israel ser um Povo especial, o Povo eleito de Deus. Essa eleição manifesta-se na presença amorosa e libertadora de Jahwéh junto do seu Povo (“qual a grande nação que tem a divindade tão perto de si como está perto o Senhor nosso Deus sempre que O invocamos?” – vers. 7), no dom da Lei e na “sabedoria” presente nessas leis e preceitos que o Senhor deu a Israel, a fim de o conduzir pelos caminhos da história (“qual é a grande nação que tem mandamentos e decretos tão justos como esta lei que hoje vos apresento?” – vers. 8).
Israel, Povo “de dura cerviz”, nem sempre acolheu e cumpriu as leis e os preceitos que o Senhor lhe propôs; mas os círculos religiosos de Israel preocuparam-se sempre em mostrar ao Povo que essa Lei era uma proposta segura para chegar à vida plena, à felicidade. É essa convicção que o nosso catequista deuteronomista deixa transparecer nesta “homilia” que nos propõe.

ACTUALIZAÇÃO

¨ O autor deste texto é, antes de mais, um crente com um enorme apreço pela Palavra de Deus. Ele vê nas leis e preceitos de Deus um caminho seguro para a felicidade e para a vida em plenitude. Por isso, recomenda insistentemente ao seu Povo que acolha a Palavra de Deus e se deixe guiar por ela. Que importância é que a Palavra de Deus assume na minha existência? Consigo encontrar tempo e disponibilidade para escutar, para meditar e interiorizar a Palavra de Deus, de forma a que ela informe os meus valores, os meus sentimentos e as minhas acções?

¨ Para muitos dos nossos contemporâneos, as leis e preceitos de Deus são um caminho de escravidão, que condicionam a autonomia e que limitam a liberdade do homem; para outros, as leis e preceitos de Deus são uma moral ultrapassada, que não condiz com os valores do nosso tempo e que deve permanecer, coberta de pó, no museu da história. Em contrapartida, para o catequista que nos oferece esta reflexão do Livro do Deuteronómio, a Palavra de Deus é um caminho sempre actual, que liberta o homem da escravidão do egoísmo e que o conduz ao encontro da verdadeira vida e da verdadeira liberdade. De facto, a escuta atenta e o compromisso firme com a Palavra de Deus é, para os crentes, uma experiência libertadora: salva-nos do egoísmo, do orgulho, da auto-suficiência e projecta-nos para o amor, para a partilha, para o serviço, para o dom da vida.

¨ Uma das insistentes recomendações do nosso texto é a de não adulterar a Palavra de Deus, ao sabor dos interesses pessoais dos homens. Existe sempre o perigo, quer na nossa reflexão pessoal, quer na nossa partilha comunitária, de torcermos a Palavra ao sabor dos nossos interesses, de limarmos a sua radicalidade, de lhe cortarmos os aspectos mais questionantes, ou de a fazermos dizer coisas que não vêm de Deus… É preciso perguntarmo-nos constantemente se a Palavra que vivemos e anunciamos é a Palavra de Deus ou é a nossa “palavra”, se ela transmite os valores de Deus ou os nossos valores pessoais, se ela testemunha a lógica de Deus ou a nossa lógica humana. Este processo de discernimento é mais fácil quando é feito em comunidade, no diálogo e no confronto com os irmãos que caminham connosco, que nos questionam e que partilham connosco a sua perspectiva das coisas.

¨ Nós os crentes comprometidos andamos sempre muito ocupados a fazer coisas bonitas no sentido de mudar o mundo, num activismo por vezes exagerado e que, aos poucos, nos vai fazendo perder o sentido da nossa acção e do nosso testemunho. No meio dessa actividade frenética, temos de encontrar tempo para escutar Deus, para meditar as suas propostas, para repensar as suas leis e preceitos, para descobrir o sentido da nossa acção no mundo. Sem a escuta da Palavra, a nossa acção torna-se um “fazer coisas” estéril e vazio que, mais tarde ou mais cedo, nos leva a perder o sentido do nosso testemunho e do nosso compromisso.


SALMO RESPONSORIAL – Salmo 14 (15)

Refrão 1:  Quem habitará, Senhor, no vosso santuário?

Refrão 2: Ensinai-nos, Senhor:
 quem habitará em vossa casa?

O que vive sem mancha e pratica a justiça
e diz a verdade que tem no seu coração
e guarda a sua língua da calúnia.

O que não faz mal ao seu próximo nem ultraja o seu semelhante,
o que tem por desprezível o ímpio,
mas estima os que temem o Senhor.

O que não falta ao juramento, mesmo em seu prejuízo,
e não empresta dinheiro com usura,
nem aceita presentes para condenar o inocente.
Quem assim proceder jamais será abalado.


LEITURA II – Tg 1,17-18.21-22.27

Leitura da Epístola de São Tiago

Caríssimos irmãos:
Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto,
descem do Pai das luzes,
no qual não há variação nem sombra de mudança.
Foi Ele que nos gerou pela palavra da verdade,
para sermos como primícias das suas criaturas.
Acolhei docilmente a palavra em vós plantada,
que pode salvar as vossas almas.
Sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes,
pois seria enganar-vos a vós mesmos.
A religião pura e sem mancha,
aos olhos de Deus, nosso Pai,
consiste em visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações
e conservar-se limpo do contágio do mundo.

AMBIENTE

A carta de onde foi extraída a nossa segunda leitura de hoje é um escrito de um tal Tiago (cf. Tg 1,1), que a tradição liga a esse Tiago “irmão” do Senhor, que presidiu à Igreja de Jerusalém e do qual os Evangelhos falam acidentalmente como filho de certa Maria (cf. Mt 13,55; 27,56). Teria morrido decapitado em Jerusalém no ano 62… No entanto, a atribuição deste escrito a tal personagem levanta bastantes dificuldades. O mais certo é estarmos perante um outro qualquer Tiago, desconhecido até agora (o “Tiago, filho de Alfeu” – de que se fala em Mc 3,18 e par. – e o “Tiago, filho de Zebedeu” e irmão de João – de que se fala em Mc 1,19 e par. – também não se encaixam neste perfil). É, de qualquer forma, um autor que escreve em excelente grego, recorrendo até, com frequência, à “diatribe” – um género muito usado pela filosofia popular helénica. Inspira-se particularmente na literatura sapiencial, para extrair dela lições de moral prática; mas depende também profundamente dos ensinamentos do Evangelho. Trata-se de um sábio judeo-cristão que repensa, de maneira original, as máximas da sabedoria judaica, em função do cumprimento que elas encontraram na boca e no ensinamento de Jesus.
A carta foi enviada “às doze tribos que vivem na Diáspora” (Tg 1,1). Provavelmente, a expressão alude a cristãos de origem judaica, dispersos no mundo greco-romano, sobretudo nas regiões próximas da Palestina – como a Síria ou o Egipto; mas, no geral, a carta parece dirigir-se a todos os crentes, exortando-os a que não percam os valores cristãos autênticos herdados do judaísmo através dos ensinamentos de Cristo. Denuncia, sobretudo, certas interpretações consideradas abusivas da doutrina paulina da salvação pela fé, sublinhando a importância das obras; e ataca com extrema severidade os ricos (cf. Tg 1,9-11; 2,5-7; 4,13-17; 5,1-6).
O nosso texto pertence à primeira parte da carta (cf. Tg 1,2-27). Aí, o autor apresenta, num conjunto de desenvolvimentos e de sentenças aparentemente sem ordem nem lógica, uma síntese ou guia breve da carta, pois oferece um breve panorama dos problemas que o preocupam e que ele vai tratar nos capítulos seguintes.

MENSAGEM

Os versículos da Carta de Tiago que nos são propostos como segunda leitura reflectem sobre a Palavra de Deus. O autor da carta não desenvolve um raciocínio continuada, mas vai elencando vários aspectos relacionados com a forma como os crentes devem ver e acolher a Palavra de Deus…
1. Deus oferece continuamente ao homem os seus dons, a fim de lhe proporcionar vida e felicidade (vers. 17). A Palavra de Deus é um dom que o “Pai das luzes” oferece ao homem e destina-se a gerar uma nova humanidade. Os crentes, iluminados pela “Palavra da verdade” que lhes vem de Deus, podem caminhar em segurança em direcção à vida plena, à felicidade sem fim (vers. 18).
2. Os crentes devem estar sempre disponíveis para acolher a Palavra de Deus. Não podem fechar-se no seu orgulho e auto-suficiência, ignorando as propostas de Deus; mas devem abrir o coração para que a Palavra lançada por Deus aí encontre lugar, aí possa lançar raízes e desenvolver-se (vers. 21b).
3. A escuta e o acolhimento da Palavra têm, contudo, de conduzir à acção. A escuta da Palavra de Deus tem de conduzir à conversão, à mudança, ao abandono da vida velha do egoísmo e do pecado, a fim de abraçar uma vida segundo Deus. A escuta da Palavra de Deus também não pode fechar o homem num espiritualismo alienante e estéril, mas tem de conduzir a um compromisso efectivo com a transformação do mundo (vers. 22).
4. No último versículo da nossa leitura (vers. 27), o autor da carta descreve a religião autêntica (por oposição à religião vazia, inoperante, morta, daqueles que falam muito mas não praticam acções coerentes com as suas palavras – vers. 26): “visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e conservar-se limpo do contágio do mundo”. Ligando este versículo com o tema central do resto da leitura (a Palavra de Deus), podemos dizer que é a escuta atenta da Palavra de Deus que nos projecta para a acção e para o compromisso. A escuta da Palavra de Deus leva o crente a passar de uma religião ritual, legalista, externa, superficial, para uma religião de efectivo compromisso com a realização do projecto de Deus e com o amor dos irmãos.

ACTUALIZAÇÃO

¨ Na nossa sociedade, há uma tal super-abundância de palavras, que a palavra se desvalorizou. Todos dizem o que muito bem entendem, às vezes de uma forma pouco serena e pouco equilibrada, sem pesar as consequências. Habituamo-nos, portanto, a não levar demasiado a sério as palavras que escutamos e a não lhes conceder um crédito absoluto. O nosso texto, contudo, valoriza a Palavra de Deus e sublinha a sua importância no sentido de nos conduzir ao encontro da vida verdadeira e eterna. É preciso darmos à Palavra que Deus nos dirige um peso infinitamente superior às palavras sem nexo que todos os dias enchem os nossos ouvidos e que intoxicam a nossa mente… A Palavra de Deus é Palavra geradora de vida, de eternidade, de felicidade; por isso, deve ser por nós valorizada.

¨ O excesso de palavras (autêntica poluição sonora!) leva também à dificuldade em escutar com atenção. Não temos tempo nem paciência para escutar todos os disparates, todas as conversas sem sentido, toda a verborreia daqueles que gostam de se ouvir a si próprios, embora não digam nada de importante. Por outro lado, as exigências da vida moderna, o trabalho excessivo, o corre-corre do dia a dia, limitam muito a nossa disponibilidade para escutar. Criamos hábitos de não escuta e tornamo-nos surdos aos apelos que chegam até nós através da palavra. A nossa leitura convida-nos, entretanto, a encontrar tempo e disponibilidade para escutar o Deus que nos fala e que, através da Palavra que nos dirige, nos apresenta as suas propostas para nós e para o mundo.

¨ A Palavra de Deus que escutamos e que acolhemos no coração deve conduzir-nos à acção. Se ficamos apenas pela escuta e pela contemplação da Palavra, ela torna-se estéril e inútil. É preciso transformar essa Palavra que escutamos em gestos concretos, que nos levem à conversão e que tragam um acréscimo de vida para o mundo. A Palavra de Deus que escutamos tem de nos levar ao compromisso – à luta pela justiça, pela paz, pela dignidade dos nossos irmãos, pelos direitos dos pobres, por um mundo mais fraterno e mais cristão.

¨ A nossa religião, sem a escuta atenta e comprometida da Palavra de Deus, pode facilmente tornar-se o mero cumprimento de ritos, a fidelidade a certas práticas de piedade, uma tradição que herdámos e na qual nos instalámos, uma prática que torna mais fácil a nossa inserção num determinado meio social, uma alienação que nos faz esquecer certos dramas da nossa vida… É a Palavra de Deus que, propondo-nos uma escuta contínua de Deus e dos seus projectos e um compromisso continuamente renovado com a construção do mundo, dá sentido a toda a nossa experiência religiosa, transformando-a numa verdadeira experiência de vida nova, de vida autêntica.


ALELUIA – Tg 1,18

Aleluia. Aleluia.

Deus Pai nos gerou pela palavra da verdade,
para sermos como primícias das suas criaturas.


EVANGELHO – Mc 7,1-8.14-15.21-23

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
reuniu-se à volta de Jesus
um grupo de fariseus e alguns escribas
que tinham vindo de Jerusalém.
Viram que alguns dos discípulos de Jesus
comiam com as mãos impuras, isto é, sem as lavar.
– Na verdade, os fariseus e os judeus em geral
não comem sem terem lavado cuidadosamente as mãos,
conforme a tradição dos antigos.
Ao voltarem da praça pública,
não comem sem antes se terem lavado.
E seguem muitos outros costumes
a que se prenderam por tradição,
como lavar os copos, os jarros e as vasilhas de cobre –.
Os fariseus e os escribas perguntaram a Jesus:
«Porque não seguem os teus discípulos a tradição dos antigos,
e comem sem lavar as mãos?»
Jesus respondeu-lhes:
«Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas,
como está escrito:
‘Este povo honra-Me com os lábios,
mas o seu coração está longe de Mim.
É vão o culto que Me prestam,
e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos’.
Vós deixais de lado o mandamento de Deus,
para vos prenderdes à tradição dos homens».
Depois, Jesus chamou de novo a Si a multidão
e começou a dizer-lhe:
«Ouvi-Me e procurai compreender.
Não há nada fora do homem
que ao entrar nele o possa tornar impuro.
O que sai do homem é que o torna impuro;
porque do interior dos homens é que saem os maus pensamentos:
imoralidades, roubos, assassínios,
adultérios, cobiças, injustiças,
fraudes, devassidão, inveja,
difamação, orgulho, insensatez.
Todos estes vícios saem lá de dentro
e tornam o homem impuro».

AMBIENTE

Na primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30), o autor apresenta Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. Deslocando-se por toda a Galileia, Jesus anuncia a Boa Nova do Reino de Deus com as suas palavras e os seus gestos, propondo um mundo novo de vida, de liberdade, de fraternidade para todos os homens. A sua proposta provoca as reacções e as respostas mais diversas nos líderes judaicos, no povo e nos próprios discípulos.
A cena que nos é hoje proposta no Evangelho mostra-nos, precisamente, a reacção dos fariseus e dos doutores da Lei à acção de Jesus. Pouco antes, Jesus tinha realizado a multiplicação dos pães e dos peixes (cf. Mc 6,34-44), propondo, com o seu gesto, um mundo novo de fraternidade, de serviço e de partilha (o “Reino de Deus”); e os líderes judaicos, sem coragem para enfrentar-se directamente com Jesus e para pôr em causa a sua proposta, escolhem os discípulos como alvo das suas críticas… Naturalmente, esses fariseus, fanáticos da Lei, vão questionar os discípulos de Jesus acerca da forma deficiente como eles cumprem a “tradição dos antigos”.
Para os fariseus, a “tradição dos antigos” não se cingia às normas escritas contidas na Lei (Torah), mas abrangia um imenso conjunto de leis orais onde apareciam as decisões e as sentenças dos rabis acerca dos mais diversos temas. Na época de Jesus, essa “tradição dos antigos” constava de 613 leis (tantas quantas as letras do Decálogo dado a Moisés no Monte Sinai), das quais 248 eram preceitos de formulação positiva e 365 eram preceitos de formulação negativa. Essas leis – que o Povo tinha dificuldade em conhecer na sua totalidade e que tinha, ainda mais, dificuldade em praticar – eram, para os fariseus, o caminho para tornar Israel um Povo santo e para apressar a vinda libertadora do Messias. Vai ser, precisamente, à volta desta temática que se vai centrar a polémica entre Jesus e os fariseus que o Evangelho de hoje nos relata.
Quando Marcos escreveu o seu Evangelho (durante a década de 60), a questão do cumprimento da Lei judaica ainda era uma questão “quente”. Para os cristãos vindos do judaísmo, a fé em Jesus devia ser complementada com o cumprimento rigoroso das leis judaicas… No entanto, a imposição dos costumes judaicos levaria, certamente, ao afastamento dos cristãos vindos do paganismo. A questão que era preciso equacionar era a seguinte: o cumprimento da Lei de Moisés era importante, para a comunidade cristã? Para que o Reino que Jesus propôs se concretizasse, era necessário o cumprimento integral da Lei judaica? O Concílio de Jerusalém (por volta do ano 49) já havia dado uma primeira resposta à questão: para os cristãos, o fundamental é a pessoa de Jesus e o seu Evangelho; não é lícito impor aos cristãos vindos do paganismo o fardo da Lei de Moisés. No entanto, o problema continuou a colocar-se durante algumas décadas mais, nomeadamente a propósito dos tabus alimentares hebraicos e que os cristãos vindos do judaísmo pretendiam impor a toda a Igreja (cf. Rom 14,1-15,6).
É, provavelmente, a esta temática que o evangelista Marcos quer responder.

MENSAGEM

Os povos antigos, em geral, e os judeus, em particular, sentiam um grande desconforto quando tinham de lidar com certas realidades desconhecidas e misteriosas (quase sempre ligadas à vida e à morte) que não podiam controlar nem dominar. Criaram, então, um conjunto abundante de regras que interditavam o contacto com essas realidades (por exemplo, os cadáveres, o sangue, a lepra, etc.) ou que, pelo menos, regulamentavam a forma de lidar com elas, de forma a torná-las inofensivas. No contexto judaico, quem infringia – mesmo involuntariamente – essas regras colocava-se a si próprio numa situação de marginalidade e de indignidade que o impedia de se aproximar do mundo divino (o culto, o Templo) e de integrar a comunidade do Povo santo de Deus. Dizia-se então que a pessoa ficava “impura”. Para readquirir o estado de “pureza” e poder reintegrar a comunidade do Povo santo, o crente necessitava de realizar um rito de “purificação”, cuidadosamente estipulado na “Lei”.
Na época de Jesus, as regras da “pureza” tinham sido absurdamente ampliadas pelos doutores da Lei. Na opinião dos rabis de Israel, existia uma lista imensa de coisas que tornavam o homem “impuro” e que o afastavam da comunidade do Povo santo de Deus. Daí a obsessão com os rituais de “purificação”, que deviam ser cumpridos a cada passo da vida diária.
Um desses ritos consistia na lavagem das mãos antes das refeições. Na sua origem está, provavelmente, a universalização do preceito que mandava os sacerdotes lavarem os pés e as mãos, antes de se aproximarem do altar para o exercício do culto (cf. Ex 30,17-21). Na perspectiva dos doutores da Lei, a purificação das mãos antes das refeições não era uma questão de higiene, mas uma questão religiosa… Em cada momento o crente corria o risco, mesmo sem o saber, de tropeçar com uma realidade impura e de lhe tocar; para evitar que a “impureza” (que lhe ficara agarrada às mãos) se introduzisse, juntamente com os alimentos, no corpo exigia-se a lavagem das mãos antes das refeições.
Na Galileia, terra em permanente contacto com o mundo pagão e onde as normas de “pureza” não eram tão rígidas como em Jerusalém, não se dava demasiada importância ao ritual de lavar as mãos antes das refeições para evitar a ingestão da “impureza”. Os fariseus vindos de Jerusalém, testemunhando como os discípulos comiam sem realizar o gesto ritual de purificação das mãos, ficaram escandalizados e referiram o caso a Jesus. Provavelmente, a história serviu aos fariseus para sondar Jesus e para averiguar a sua ortodoxia e o seu respeito pela tradição dos antigos.
Para Jesus, a obsessão dos fariseus com os ritos externos de purificação é sintoma de uma grave deficiência quanto à forma de ver e de viver a religião; por isso, Jesus responde ao reparo dos fariseus com alguma dureza… Partindo da Escritura (vers. 6-8) e da análise da praxis dos judeus (vers. 9-13), Jesus denuncia essa vivência religiosa que aposta apenas na repetição de práticas externas e formalistas, mas que não se preocupa com a vontade de Deus (“este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” – vers. 6) ou com o amor aos irmãos. Trata-se de uma religião vazia e estéril (“é vão o culto que Me prestam” – vers. 7), que não vem de Deus mas foi inventada pelos homens (“as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos” – vers. 7). Àqueles que apostam na religião dos ritos estéreis, Jesus chama “hipócritas” (vers. 6): interessa-lhes mais o “parecer” do que o “ser”, a materialidade do que a essência das coisas… Eles cumprem as regras, mas não amam; vestem com fingimento a máscara da religião, mas não se preocupam minimamente com a vontade de Deus. Esta religião é uma mentira, uma hipocrisia, ainda que se revista de ares muito santos e muito piedosos.
Depois, Jesus dirige-Se à multidão e formula o princípio decisivo da autêntica moralidade: “não há nada fora do homem que ao entrar nele o possa tornar impuro; o que sai do homem é que o torna impuro” (vers. 15). Este princípio geral, à primeira vista enigmático e passível de várias interpretações, será explicado mais à frente: “do interior do homem é que saem os maus pensamentos: imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez. Todos estes vícios saem lá de dentro e tornam o homem impuro” (vers. 22-23). O dito de Jesus refere-se, naturalmente, a dois “circuitos” diversos: o do estômago (onde entram os alimentos que se ingerem) e o do coração (de onde saem os pensamentos, os sentimentos e as acções). Os alimentos que entram no estômago não são fonte de “impureza”; os pensamentos e as acções más que saem do coração do homem é que são fonte de “impureza”: afastam o homem de Deus e da comunidade do Povo santo.
Na antropologia judaica, o “coração” é o “interior do homem” em sentido amplo; é aí que está a sede dos sentimentos, dos desejos, dos pensamentos, dos projectos e das decisões do homem. É nesse “centro vital” de onde tudo parte que é preciso actuar. A verdadeira religião não passa, portanto, pelo cumprimento de regras externas, que regulam o que o homem come ou não come; mas passa por uma autêntica conversão do coração, que leve o homem a deixar a vida velha e a transformar-se num Homem Novo, que assume e que vive os valores do Reino. A preocupação com as regras externas de “pureza” é uma preocupação estéril, que não toca com o essencial – o coração do homem; pode até servir para distrair o crente do essencial, dando-lhe uma falsa segurança e uma falsa sensação de estar em regra com Deus. A verdadeira preocupação do crente deve ser moldar o seu coração, a fim de que os seus sentimentos, os seus desejos, os seus pensamentos, os seus projectos, as suas decisões se concretizem, no dia a dia, na escuta atenta dos desafios de Deus e no amor aos irmãos.

ACTUALIZAÇÃO

¨ O que é que é decisivo na experiência religiosa? Será o estrito cumprimento das leis definidas pela Igreja? Serão as manifestações exteriores de religiosidade que definem quem é bom ou mau, santo ou pecador, amigo ou inimigo de Deus?

¨ As “leis” têm o seu lugar numa experiência religiosa, enquanto sinais indicadores de um caminho a percorrer. No entanto, é preciso que o crente tenha o discernimento suficiente para dar à “lei” um valor justo, vendo-a apenas como um meio para chegar mais além no compromisso com Deus e com os irmãos. A finalidade da nossa experiência religiosa não é cumprir leis, mas aprofundar a nossa comunhão com Deus e com os outros homens sendo, eventualmente, ajudados nesse processo por “leis” que nos indicam o caminho a seguir.

¨ Se fizermos das leis algo de absoluto, elas podem tornar-se para nós um fim e não um caminho. Nesse caso, as “leis” serão, em última análise, uma forma de acalmar a nossa consciência, de nos julgarmos em regra com Deus, de sentirmos que Deus nos deve algo porque nós cumprimos todas as regras estabelecidas. Tornamo-nos orgulhosos e auto-suficientes, pois sentimos que somos nós que, com o nosso esforço para estar em regra, conquistamos a nossa salvação. Deixamos de precisar de Deus, ou só precisamos d’Ele para apreciar o nosso esforço e para nos dar aquilo que julgamos ser uma “justa recompensa”. O culto que prestamos a Deus pode tornar-se, nesse caso, um processo interesseiro de compra e venda de favores e não uma manifestação do amor que nos enche o coração. A nossa religião será, nesse caso, uma mentira, uma negociata, que Deus não aprecia nem pode caucionar.

¨ De acordo com os ensinamentos de Jesus, não é muito religioso ou muito cristão quem aceita todas as “leis” propostas pela Igreja, ou quem cumpre escrupulosamente todos os ritos; mas é cristão verdadeiro aquele que, no seu coração, aderiu a Jesus e procura segui-l’O no caminho do amor e da entrega, que aceita integrar a comunidade dos discípulos, que acolhe com gratidão os dons de Deus, que celebra a fé em comunidade, que aceita fazer com os irmãos uma experiência de amor partilhado.

¨ É isso que Jesus quer dizer quando convida os seus discípulos a não se preocuparem com as leis e os ritos externos, mas a preocuparem-se com o que lhes sai do coração. É no interior do homem que se definem os sentimentos, os desejos, os pensamentos, as opções, os valores, as acções do homem. É daí que nascem os nossos gestos injustos, as discórdias e violências que destroem a relação, as tentativas de humilhar os irmãos, os rancores que nos impedem de perdoar e de aceitar os outros, as opções que nos fazem escolher caminhos errados e que nos escravizam a nós e àqueles que caminham ao nosso lado… A verdadeira religião passa por um processo de contínua conversão, no sentido de nos parecermos cada vez mais com Jesus e de acolhermos a proposta de Homem Novo que Ele nos veio fazer.

¨ É preciso mantermo-nos livres e críticos em relação às “leis” que nos são propostas, sejam elas leis civis ou religiosas... Elas servem-nos e devem ser consideradas se nos ajudarem a ser mais humanos, mais fraternos, mais justos, mais comprometidos, mais coerentes, mais “família de Deus”; elas deixam de servir se geram escravidão, dependência, injustiça, opressão, marginalização, divisão, morte. O processo de discernimento das “leis” boas e más não pode, contudo, ser um processo solitário; mas deve ser um processo que fazemos, com o Espírito Santo, na partilha comunitária, no confronto fraterno com os irmãos, numa procura coerente e interessada do melhor caminho para chegarmos à vida plena e verdadeira.


ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 22º DOMINGO DO TEMPO COMUM
(adaptadas de “Signes d’aujourd’hui”)

1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 22º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.

2. BILHETE DE EVANGELHO.
Só Deus pode ver o coração, enquanto os homens, esses, vêem as aparências. É, pois, com toda a confiança filial que podemos deixar Deus olhar-nos. Mas isso é exigente para nós, porque todas as nossas palavras e todos os nossos gestos devem estar em harmonia com o que o nosso coração quer exprimir. As nossas palavras e orações devem ser a expressão do nosso amor filial e fraternal. A lei de Deus está inscrita no nosso coração, conhecemos a sua vontade, sabemos muito bem o que Lhe agrada: cabe a nós pormo-nos de acordo sobre os nossos comportamentos e sobre esta vontade de Deus. Aliás, falta-nos pedir-Lhe: “Que a tua vontade seja feita!” Então, talvez Deus dir-nos-á: “Honras-Me com os lábios, fazes a minha vontade, mas o teu coração está longe de Mim”.

3. À ESCUTA DA PALAVRA.
Os escribas e fariseus tinham enchido a Lei de Moisés com tantas interpretações que se acabou por sacralizá-la e torná-la intocável, sob o nome de “tradições dos antigos”. A lei tinha-se tornado, em todos os detalhes da vida quotidiana, um fardo insuportável denunciado pelo próprio Jesus. Assim, era contrário à tradição dos antigos comer sem ter lavado as mãos. Regra de higiene elementar, sem dúvida, mas que se tinha intitulado de “purificação”. Não se submeter a essa regra era tornar-se impuro aos olhos de Deus! O que faziam precisamente alguns discípulos de Jesus. Jesus aproveita para dar uma lição de moral… A palavra de Jesus tem todo o seu valor e vigor. Quantas interpretações dadas em Igreja, ao longo dos séculos, que acabámos por identificar com a Palavra de Deus! Multiplicaram-se leis, obrigações e proibições, dizendo: “É a tradição!” Nem pensar em mudar uma vírgula das regras litúrgicas ou morais! É, sem dúvida, uma atitude tranquilizadora, mas esconde muitas vezes medos e inseguranças. É a mesma reacção que a dos escribas e dos fariseus! Ora, não é protegendo a nossa fé com uma carapaça de leis que a tornamos mais sólida, mas por uma escuta sem cessar nova daquilo que “o Espírito diz às Igrejas”. Mas é verdade que o Espírito Santo sempre teve tendência para mexer com os homens e provocá-los, para fazê-los avançar para o grande largo! O Espírito de Jesus quer construir-nos como seres vivos, com uma coluna vertebral interior e não com uma carapaça exterior, para que possamos manter-nos de pé, como ressuscitados!

4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Ter um objectivo… Não fiquemos pelas boas intenções… Não tenhamos demasiadas ambições… Cristo não nos pede grandes façanhas, Ele prefere a sinceridade do coração e a vontade de servir o nosso próximo. Vale mais ter um objectivo razoável (visitar determinada pessoa que está só, ajudar outra nas suas preocupações materiais) e tudo fazer para o atingir.


UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
PROPOSTA PARA
ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA NAS COMUNIDADES DEHONIANAS
Grupo Dinamizador:
P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
Tel. 218540900 – Fax: 218540909
portugal@dehonianos.org – www.dehonianos.org




Roteiro Homilético 3 - Liturgia: Vida Pastoral
A palavra de Deus: vida para todos

I. Introdução geral

            A palavra de Deus tem o objetivo de promover a vida para todas as pessoas. É o tema central das leituras deste domingo Somos herdeiros de uma tradição de fé na qual Deus revelou seu plano de amor e salvação a toda a humanidade. O povo de Israel, desde a sua origem, faz a experiência desse amor de Deus, sente sua presença libertadora e procura acolher o seu projeto. Por meio das palavras colocadas na boca de Moisés (I leitura), Deus alerta para a importância da prática de normas e estatutos a fim de garantir as condições de vida e dignidade na terra prometida. Mais tarde, essas normas e estatutos foram interpretados segundo os interesses do sistema sacerdotal de pureza. Tornaram-se legalismo excludente, contra o qual Jesus se posiciona. Seu ensinamento e sua prática seguem por outro caminho: é do coração de cada um de nós que vem o discernimento para o bem ou para o mal (evangelho). A palavra de Deus é caminho, verdade e vida. A carta de Tiago insiste sobre a necessidade de ouvi-la com atenção e pô-la em prática, renunciando a toda “imundície e malícia” (II leitura). Quem segue com docilidade a palavra de Deus possui a vida em si mesmo, livra-se da corrupção do mundo e solidariza-se com as pessoas que passam por dificuldades.

II. Comentário dos textos bíblicos

I leitura (Dt 4,1-2.6-8): Normas e estatutos que garantem a vida
            O acontecimento do êxodo, com a organização do povo de Israel em tribos na terra prometida, sempre foi recordado pelas sucessivas gerações. Em cada época histórica, a memória do passado funciona como luz a iluminar o sentido do presente e projetar um futuro melhor. Esse é também o objetivo da I leitura da liturgia de hoje. O discurso colocado na boca de Moisés antes de entrar na terra prometida visa a aprofundar a importância das normas e estatutos que garantem a vida de liberdade e de paz para o povo.

            Sabemos que o povo de Israel se formou no processo da caminhada de libertação da escravidão do Egito. Diversos grupos de marginalizados uniram-se ao redor do mesmo sonho. Fizeram a experiência de fé no Deus vivo e libertador. Identificaram-se como “povo de Deus”. Na terra de Canaã, organizaram-se em tribos e nela puderam viver orientados por leis estabelecidas com base nas descobertas feitas na convivência durante o êxodo e no processo de organização na nova terra. São normas e estatutos que orientam desde as relações familiares até as tribos como um todo. Abrangem princípios econômicos (= a terra é de Deus e seus frutos devem ser partilhados segundo a necessidade de cada família), princípios políticos (= descentralização do poder e corresponsabilidade nas decisões) e princípios ideológico-religiosos, com fidelidade ao projeto libertador de Deus, cujo centro é a defesa e a promoção da vida.

            Sabemos também que o regime tribalista em Israel, que durou mais ou menos 200 anos (de 1250 a.C. a 1050 a.C.), foi sucedido pela monarquia. As normas e estatutos foram modificados segundo os interesses dos reis. Nesse sentido, o texto de Deuteronômio pode ser visto como uma denúncia contra essas modificações que fortalecem um sistema político opressor do povo. O ensinamento oficial não é o mesmo de Moisés, isto é, já não corresponde ao ideal de uma sociedade justa. Deuteronômio, então, resgata a autoridade do maior representante da Lei, Moisés, e atualiza a memória de suas palavras: “Nada acrescentareis ao que eu vos ordeno e nada tirareis também: observareis os mandamentos do Senhor vosso Deus tais como vo-los prescrevo”. Uma grande nação não se faz com poder centralizado, nem com forte exército, nem com uma economia que privilegia um pequeno grupo. Uma grande nação se faz pela promoção da justiça social, pela qual todas as pessoas têm condições de viver bem. As leis que defendem esse ideal devem ser respeitadas.

Evangelho (Mc 7,1-8.14-15.21-23): A lei inscrita no coração
            Jesus sabe onde pisa. Conhece o sistema que rege a vida dos seus conterrâneos. Sabe quem são e como se comportam os agentes desse sistema. Desde o início de seu ministério público, deixou claro o seu posicionamento: veio para resgatar a vida roubada pelas imposições absurdas do poder político e religioso que imperava na Palestina. O evangelho deste domingo relata uma das controvérsias entre Jesus e o grupo dos ideólogos do sistema de pureza: fariseus e escribas.

            Por meio dessa controvérsia, deduz-se como o ensinamento oficial exercia pressão permanente sobre o cotidiano da vida das pessoas comuns. A lei deveria ser um caminho para garantir o bem-estar de todas as pessoas e proporcionar uma convivência respeitosa. Para os escribas e fariseus, porém, tornou-se o meio de controle de todas as ações de cada pessoa. Como o texto de Marcos nos mostra, os casuísmos chegavam ao extremo de obrigar as observâncias nos mínimos detalhes, como lavar as mãos até o cotovelo antes de comer o pão “e muitos outros costumes…”. Ensinavam que essa era uma “tradição dos antigos” e, portanto, revestia-se de um caráter sagrado. Não podia ser violada.

            A tradição dos antigos, porém, assim como era apresentada no tempo de Jesus, não correspondia ao sentido original da lei de Moisés. Originalmente, a lei em Israel visava à manutenção de uma sociedade baseada na justiça, na liberdade e na paz, como no tempo do tribalismo. A tradição dos antigos havia sido modificada pelos rabinos judeus a partir da organização do sistema sacerdotal de pureza. Ao redor do grande símbolo religioso que era o templo de Jerusalém, os rabinos fizeram sua própria interpretação da lei mosaica e acrescentaram grande quantidade de outras normas, impondo ao povo um peso insustentável. Não se podia viver normalmente sem infringir alguma dessas normas. Era uma maneira coercitiva de manter o povo na dependência dos interesses do grupo que controlava o sistema do Templo.

O texto mostra que qualquer infração era cobrada. Em todo lugar havia “espiões”. Podemos imaginar o que sentia uma pessoa do povo diante das exigências religiosas oficiais e de sua impossibilidade de cumpri-las. Leve-se em conta que esses ensinamentos eram incutidos desde a infância. Eram “mandamentos humanos” que não honravam a Deus.

A infração dos discípulos da exigência de lavar as mãos antes da refeição e a cobrança dos fariseus e escribas transformaram-se em ocasião propícia para Jesus oferecer outro ensinamento e indicar outro modo de viver o cotidiano. A pessoa, para honrar a Deus e prestar-lhe um culto digno, não precisa estar atrelada a um sistema de leis que oprime e exclui. Deve, sim, prestar atenção na lei inscrita por Deus em seu coração. É do interior de cada um de nós que saem as boas ou más intenções, as que nos tornam puros ou impuros. Deus mora em nós e, do mais profundo de cada pessoa, ele indica o caminho a seguir. Podemos rejeitar as suas indicações e manter-nos fechados em nosso egoísmo. A conduta de cada um de nós revela se seguimos a Deus ou as “intenções malignas: roubos, assassínios, prostituição, adultério, ambições desmedidas, arrogância…”.

II leitura (Tg 1,17-18.21b-22.27): Docilidade à Palavra
            A carta de Tiago revela um dos principais empenhos existentes nas comunidades cristãs primitivas: ouvir e praticar a Palavra. Jesus se tornou o caminho da salvação. O ensinamento e a prática de Jesus agora são a nova lei a ser seguida. Jesus é a Palavra da Verdade que liberta e salva. Não basta, porém, ser ouvintes que logo esquecem. É necessário ser praticantes.

            Percebe-se que Tiago está atento ao comportamento que algumas pessoas da comunidade estão demonstrando: há sinais de “imundície” e de “malícia”. Isso significa que o jeito de viver que deveria caracterizar os seguidores de Jesus não está sendo levado a sério por alguns. “Imundície” é próprio de quem adota atitudes sujas: injustiça, exploração, mentira, falsidade, corrupção e tantas outras coisas próprias de pessoas egoístas. Também o termo “malícia” denota o comportamento da pessoa que se deixa conduzir pelo mal. No texto, encontra-se a advertência: “Deixem de lado qualquer imundície e sinal de malícia”.

            Eis o que Tiago propõe aos cristãos do seu tempo e a nós hoje: “Recebam com docilidade a Palavra que lhes foi plantada no coração e que pode salvá-los”. Aqui percebemos íntima ligação com o evangelho de hoje: é de dentro do coração de cada um que provêm tanto as coisas boas como as más. É necessário prestar atenção no que Deus fala dentro de nós. A Palavra é Jesus e seu evangelho. Recebê-la com docilidade significa renunciar a toda espécie de imundície e de malícia e optar por fazer o bem uns aos outros, como Jesus nos ensinou.

III. Pistas para reflexão

– A palavra de Deus visa garantir a vida de todas as pessoas: O povo de Israel tinha consciência de que a sociedade deve ser organizada de acordo com o plano de Deus. A terra foi-lhe dada por Deus a fim de que nela todas as tribos pudessem conviver como uma só família. Por isso, estabeleceram “normas e estatutos” para viver na liberdade e promover a dignidade e a paz social. Terra prometida + mandamentos de Deus = vida sem exclusão. Pode-se refletir sobre os princípios irrenunciáveis para uma vida feliz tanto na família como na sociedade…

– A palavra de Deus no coração de cada pessoa: Jesus ensinou a prestar atenção no que Deus revela no coração de cada um de nós. Aí está inscrita a sua vontade. Tiago exorta: “Recebam com docilidade a Palavra que lhes foi plantada no coração e que pode salvá-los”. É preciso aprender a discernir o que é bom e ser fiel ao plano de Deus, evitando toda “imundície e malícia” da realidade atual… Pode-se refletir sobre a importância da Bíblia como palavra de Deus, fundamental para a formação de boa consciência em vista da sociedade justa e fraterna.

– No domingo que vem começará o mês dedicado à Bíblia. Trata-se de ótima oportunidade para que a Igreja tenha membros mais conscientes, mais bem formados na palavra de Deus e mais seguros da decisão de serem cristãos católicos.

Celso Loraschi





Roteiro Homilético 4 - Liturgia: Dom Henrique
A palavra de Deus deste XXII Domingo chama atenção para o modo como o cristão deve viver sua prática religiosa: com sinceridade diante de Deus, humildade e amor para com os outros e não de forma legalista, fria e auto-suficiente. Com efeito, Jesus critica duramente os escribas e fariseus, que vieram de Jerusalém para observá-lo e questioná-lo. Qual é o problema deles? Certamente eram homens piedosos e queriam seguir a Lei de Deus. O problema era o espírito com o qual faziam: extremamente legalista. Vejamos:

1) A lei de Deus (para os judeus, expressa na Torah) é santa: “Agora, Israel, ouve as leis e os decretos que eu vos ensino a cumprir… Nada acrescentareis, nada tirareis à palavra que vos digo, mas guardai os mandamentos do Senhor vosso Deus…” (1a. leitura). Ora, o zelo dos fariseus e dos escribas eram tais e com uma mentalidade de tanto apego à letra pela letra, que se tornaram extremamente legalistas. Eles diziam: “Façamos uma cerca em torno da Lei”, ou seja, criaram pouco a pouco um número enorme de preceitos para evitar qualquer desobediência, ao menos remota, à lei. Preceitos humanos que foram obscurecendo a pureza da lei de Deus e sua característica de ser sinal de amor. Por exemplo: (a) A Lei dizia que o castigo não poderia ultrapassar as quarenta varadas. Os fariseus permitam somente trinta e nove, para evitar qualquer perigo de ultrapassar a conta da lei. (b) A lei proibia o trabalho no sábado. Os escribas e fariseus insistiam que até carregar o instrumento de trabalho no sábado era já um pecado: o alfaiate não poderia carregar sua agulha no sábado. (c) A lei prescrevia abluções (banhos rituais para o culto) só para os sacerdotes. Os fariseus queriam impô-las a todo o povo. A intenção era boa…. mas o resultado, não: tornava a religião algo pesado, legalista e apegado a tantos detalhes que fazia esquecer o essencial: o amor a Deus e ao irmão! Os preceitos humanos obscureciam a intenção divina!

2) A Lei não fora dada para ser um fardo que tira a liberdade e entristece a vida, mas como sinal do amor de Deus, que orienta e indica o caminho com ternura: “Vós os guardareis… porque neles está a vossa sabedoria e inteligência… Ouve as leis que vos ensino a cumprir para que vivais e entreis na posse da terra prometido pelo Senhor Deus” (1a. leitura). A lei e toda prática religiosa devem ser caminho de vida, e não um fardo insuportável e asfixiante, tornando a religião algo tristonho e pesado, como se fosse obra de um Deus ciumento e invejoso da nossa felicidade! Jesus critica os fariseus e os escribas por isso: tornaram a religião um fardo pesado e triste, ao invés de ser primeiramente um relacionamento com Deus, íntimo, feliz e amoroso!

3) Jesus censura também os escribas e fariseus pela incapacidade de distinguir entre o essencial e o secundário; em discernir o que vem Deus e o que é meramente prática e tradição humanas, talvez boas e louváveis, mas não essenciais. Em matéria de religião, nem tudo tem igual valor, nem tudo tem a mesma importância. A medida de tudo é o amor: o amor é a plenitude da lei (Rm 13,10); só o amor dá sentido a todas as coisas!

3) Outro motivo de crítica é que uma religião assim, apegada a preceitos exteriores, torna-se desatenta do coração, sem olhar a intenção com que se faz e se vive. Cai-se na hipocrisia (a palavra hipócrita vem de hypokrités = ator teatral): uma religião meramente exterior, sem aquelas atitudes interiores, que são as que importam realmente: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam!” (evangelho). É sério: a atitude exterior (lábios) não combina com o interior (coração)! As práticas externas valem quando são sinal de um compromisso interior de amor e conversão em relação a Deus. É importante observar que Jesus não condena as práticas exteriores, mas a sua supervalorização e a sua atuação sem sinceridade: “Importava praticar estas coisas, mas sem omitir aquelas” (Mt 23,23).

4) Há também o perigo da auto-suficiência: a pessoa sente-se segura de si mesma por causa de suas práticas: “Ah, eu vou à missa todo domingo, rezo o terço e dou esmola! Estou em dia com Deus!” O homem nunca está em dia com Deus. Pensar assim, é deixar de perceber que tudo é graça e que jamais mereceremos o amor que Deus nos tem gratuitamente. Sem contar que tal atitude nos leva, muitas vezes, a nos julgar melhores que os outros, desprezando os que julgamos mais fracos ou imperfeitos! Era exatamente o que ocorria com os fariseus: “Este povo que não conhece a lei são uns malditos!” (Jo 7,49); “Tu nasceste todo no pecado e nos ensinas?” (Jo 9,34); “Ó Deus, eu te dou graças porque não sou como o resto dos homens, ladrões, injustos, adúlteros, nem como este publicano!” (Lc 18,11). É interessante comparar estas atitudes com as que São Paulo recomenda aos cristãos em Rm 12,3-13.

5) Jesus convida a ir ao essencial: vigiar as intenções e atitudes do nosso coração, pois “o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior” (evangelho). Com um coração puro, poderemos reconhecer que tudo de bom que temos é dom de Deus (“Todo dom precioso e toda dádiva perfeita vêm do alto; descem do Pai das luzes!” – 2a. leitura) e que, diante dele, somos sempre pobres e pecadores, necessitados de sua misericórdia. Isto nos abre de verdade para o amor aos outros e para a compaixão: somos todos pobres diante de Deus: “A religião pura e sem mancha diante de Deus Pai é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo”.

6) Concluindo:

Como vai nossa prática religiosa, pessoal e comunitariamente? Buscamos um relacionamento amoroso, íntimo e pessoal com o Senhor ou nos contentamos com uma prática meramente exterior? Julgamo-nos melhores que os outros diante de Deus? Às vezes dizemos: “Eu não merecia este mal…” – julgando-nos credores de Deus! Dizemos também: “Há tanta gente pior que eu; por que aconteceu comigo?” – julgando-nos melhores que os outros!

O que é mais importante na nossa vida de fé? E na nossa vida em comunidade? O salmo de meditação da missa de hoje dá ótimas pistas para uma exame de consciência.




Roteiro Homilético 5 - Liturgia: Dom Total
JESUS E AS TRADIÇÕES HUMANAS

1ª leitura: (Dt 4,1-2.6-8) A riqueza que é a Lei: nada tirar nem acrescentar – Israel recebeu a Lei, não como um fardo, mas como uma dádiva de Deus, orientação a ser seguida assim como foi dada, em plena fidelidade, sem tirar nem acrescentar nada (4,2). Ela não significa escravidão, mas antes liberdade, pois protege contra a arbitrariedade. Outros povos têm seus filósofos, Israel tem a Lei: nela, Deus lhe é próximo (4,6-8). Só em Cristo, essa proximidade será superada. * 4,1-2 cf. Dt 5,1; 6,1; 8,1; 11,8-9; Lv 18,5 * 4,6-8 cf. Sl 19[18],8; Eclo 1,16-20[14-16]; Dt 4,32-23.

2ª leitura: (Tg 1,17-18.21b-22.27) Cumprir, não apenas ouvir a Palavra – Deus é “limpo” no seu agir (1,5): não engana (1,3), propicia dádivas boas, é constante como o firmamento (1,17). Ele é quem nos “gerou” pela Palavra da Vida”, isto é, a multiforme manifestação de sua vontade, desde a palavra da Criação até sua plenificação em Cristo, que nos torna nova criatura (1,18). Esta palavra quer ser auscultada e praticada na vida (1,21-22.27). * 1,17-18 cf. Mt 7,11; Gn 1,14-18; Sl 136[135],7; Is 55,11; 1Pd 1,23; Jo 1,12-13 * 1,21 cf. 1Pd 2,1-2; 1Ts 2,13; Mt 11,29 * 1,22 cf. Mt 7,24-26; Rm 2,13 * 1,27 cf. Ex 22,21-22; Is 1,17.

Evangelho: (Mc 7,a-8a.14-15.21-23) Vontade de Deus ou tradição humana? – Mc 7,1-23 reúne diversas sentenças de Jesus, numa polêmica sobre “puro e impuro”, que toca também na relação entre os mandamentos de Deus e as tradições humanas (“dos antigos”). Jesus mostra como certas interpretações humanas da Lei sufocam a vontade de Deus (7,1-13). – Falando assim, Jesus insere-se na tradição dos profetas que olham para o interior da pessoa e não para as práticas meramente exteriores e formais (7,16-23). * 7,1-8 cf. Mt 15,1-9; Lc 11,38-39; Is 29,13 * 7,14-15 cf. Mt 15,10-11 * 7,21-23 cf. Mt 15,19-20; Rm 1,29-31; Gl 5,19-21.

***   ***   ***

A melhor coisa, quando se corrompe, vira a pior. Isso acontece com a Lei, dada por Deus a Israel mediante Moisés, quando deixada nas mãos de mestres que lhe desconhecem a intenção originária. A 1ª leitura de hoje descreve muito bem o alto valor da Lei: um tesouro de sabedoria, que supera as leis e filosofias dos outros povos. Diz direitinho o que é para fazer e para deixar. A Lei servirá para garantir a posse pacífica da Terra Prometida. E mais: servirá como um testemunho de Deus entre as nações, pois que o povo tem um Deus tão sábio?

Esta última frase revela que essas palavras foram escritas, não no tempo de Moisés, mas no tempo em que Israel, novamente, vivia no meio das nações, no exílio babilônico. Para os judeus exilados, a “conversão” à prática da Lei seria o meio para voltar à Terra Prometida e, entretanto, já servia de testemunho entre as nações (cf. a vocação do Servo do Senhor a ser “luz das nações”, Is 42,6; também da situação do exílio). Por isso, era importante observar a Lei da melhor maneira possível, sem nada tirar ou acrescentar, para não obscurecer a palavra divina por invenções humanas.

Para proteger a “árvore da vida”, que é a Lei, os escribas montaram ao redor dela a cerca de suas interpretações, tradições, jurisprudências etc. Querendo protegê-la, tornaram-na inacessível para o povo comum, e ainda a sufocaram na sua intenção principal, que é: ser a expressão do amor de Deus. Para não cair no erro se proíbe uma série de outras coisas, porque “nunca se sabe...”. Traços disso existem ainda no judaísmo atual, onde a cozinha para a carne é separada da cozinha para as comidas com leite, pois poderia acontecer que, sem o saber, a gente cozinhasse carne numa panela com um restinho de leite do mesmo animal, e a Lei proíbe cozinhar um animal com seu leite... O exagero se transformou em critério de boa conduta. Os fariseus inventaram que só os que observavam essas invenções exageradas eram realmente bons judeus. Os outros, que nem conheciam a Lei (e as suas interpretações), eram desprezíveis: os “ignorantes”.

Jesus escandaliza por seu comportamento (evangelho). Se ele fosse um verdadeiro “rabi”, ele deveria, em primeiro lugar, ver se as pessoas com quem lidava eram puras ou não. Pelo contrário: toca num leproso (Mc 2,41), deixa-se tocar por uma hemorrágica (5,27), presta ajuda a uma pagã (7,24-30). Por trás da pergunta por que os discípulos de Jesus comem com as mãos “impuras” (não lavadas), está toda a crítica do farisaísmo à conduta global de Jesus. A resposta de Jesus é violenta: a religião dos fariseus é invenção humana e a vontade de Deus, o que ele demonstra com o exemplo dos votos feitos ao templo em detrimento dos próprios pais (7,8-13, infelizmente eliminado da perícope litúrgica). E mais: toda essa questão de puro e impuro é uma farsa, pois o que deve ser puro é o interior, do copo e da gente, não o exterior. A podridão não é coisa de fora que entra na gente, como a comida, que sai novamente e vai à fossa (16-20, suprimido na liturgia!). A podridão está no coração da gente! Assim, Jesus não apenas declara todo alimento puro (19b), restituindo a criação de Deus, que fez as coisas boas (cf. At 10,15), mas ainda ensina ao homem olhar para dentro do próprio coração.

Jesus aqui demonstra espantosa liberdade face às tradições humanas, considerado o ambiente rígido em que vivia: o judaísmo lutando contra as influências estrangeiras, procurando conservar sua identidade, mediante a (exagerada) observância da Lei. Aos olhos dos “bons”, Jesus estava destruindo o povo de Deus. Coisa semelhante acontece hoje. Os que procuram garantir a “identidade”, não apenas dos cristãos, mas da “civilização cristã ocidental”, não admitem nenhum comportamento divergente das normas tradicionais que garantiram sucesso à cristandade. E, contudo, para “restituir a Lei a Deus”, para fazer com que ela seja expressão do amor de Deus, talvez seja preciso mexer com as tradições esclerosadas e com as estruturas sociais que sustentaram a cristandade tradicional juntamente com seu maior inimigo, a sociedade do lucro individual e do ateísmo prático.

O cristão deve sempre ter claro que só a Lei de Deus é intocável; as interpretações humanas, por necessárias que forem, não. Por isso, Jesus reduziu a Lei de Deus ao essencial: amor a Deus e ao próximo (nem mesmo o sábado sobrou no seu “resumo”...). Quando nossas interpretações contrariam a causa de Deus, que é a causa do homem, estamos no caminho errado, no caminho dos fariseus.

E, por falar em vontade de Deus, não basta escutar sua formulação na Lei; é preciso executá-la. Verdadeira religião não é doutrina, mas amor prático, para com os mais humildes em primeiro lugar; é o que nos ensina a 2ª leitura, de Tiago.

A VERDADEIRA RELIGIÃO

O evangelho nos regala com um dos trechos mais significativos de Marcos: a discussão sobre o que é puro e o que impuro (Mc 7,1-23). Os discípulos se puseram a comer sem lavar as mãos. Mas lá estavam alguns vizinhos piedosos, da irmandade dos fariseus, acompanhados de professores de teologia (escribas), vindos da capital, de Jerusalém. Logo se intrometeram, dizendo que é proibido comer sem lavar as mãos. (Como também se deviam lavar as coisas que se compravam no mercado, os pratos e tigelas e tudo o mais.) Mas Jesus acha tudo isso exagerado, sobretudo porque dão a isso um valor sagrado.

Na realidade, a piedade de Israel era relativamente simples. Religião complicada era a dos pagãos, que viviam oferecendo sacrifícios e queimando perfumes para seus deuses, cada vez que desejavam alguma ajuda ou queriam evitar um castigo. Mas a religião de Israel era sóbria, pois só conhecia um único Deus e Senhor. Consistia em observar o sábado, oferecer uns poucos sacrifícios, pagar o dízimo e, sobretudo, praticar a lealdade (amor e justiça) para com o próximo. Moisés já tinha dito que não deviam acrescentar nada a essas regras simples, admiradas até pelos outros povos (1ª leitura). E Tiago – o mais judeu dos autores do Novo Testamento – diz claramente: “Religião pura e sem mancha diante do Deus e Pai é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas dificuldades e guardar-se livre da corrupção do mundo” (Tg 1,27; 2ª leitura).

Mas, no tempo de Jesus, os “mestres da Lei” tinham perdido esse sentido de simplicidade. Complicaram a religião com observâncias que originalmente se destinavam aos sacerdotes. Clericalizaram a vida dos leigos. Queriam ser mais santos que o Papa! Chegavam a dizer que era mais importante fazer uma doação ao templo do que ajudar com esse dinheiro os velhos pais necessitados. Inversão total das coisas. Ajudar pai e mãe é um dos Dez Mandamentos, enquanto de doações ao templo os Dez Mandamentos nem falam. Declaravam também impuras um montão de coisas. No templo, tudo bem, o bezerro ou o cordeirinho a ser oferecido tem de ser bonito, puro, sem defeito. Mas no dia-a-dia, a gente come o que tem e do jeito como pode. Sobretudo a gente pobre, os migrantes, como eram os amigos de Jesus. Contra todas essas invenções piedosas, Jesus se inflama. Não é aquilo que entra na gente – e que é evacuado no devido lugar – que torna impuro, mas a malícia que sai de sua boca e de seu coração (Mc 7,18-23).

Jesus quis sempre ensinar o que Deus quer. A Lei era uma maneira para “sintonizar” com a vontade de Deus. E Jesus respeita a Lei, melhorando-a para torná-la mais de acordo com a vontade de Deus, que é o verdadeiro bem do ser humano. Isso é o essencial. Tudo mais deve estar ao serviço do verdadeiro bem da gente e não o impedir. A verdadeira sintonia com Deus, a verdadeira piedade é o amor a Deus e a seus filhos e filhas. Práticas piedosas que atravancam isso são doentias e/ou hipócritas.

Mais ainda que a Lei de Moisés em sua simplicidade original, a “religião de Jesus” deve brilhar por sua profunda sabedoria e bondade. Deve mostrar com toda a clareza o quanto Deus ama seus filhos e filhas ensinando-lhes a amarem-se mutuamente. Daí nossa pergunta: nossas práticas religiosas ajudam a amar mais a Deus e ao próximo, ou apenas escondem nossa falta de compromisso com a humanidade pela qual Jesus deu a sua vida?

 (O Roteiro Homilético é elaborado pelo Pe. Johan Konings SJ – Teólogo, doutor em exegese bíblica, Professor da FAJE. Autor do livro "Liturgia Dominical", Vozes, Petrópolis, 2003. Entre outras obras, coordenou a tradução da "Bíblia Ecumênica" – TEB e a tradução da "Bíblia Sagrada" – CNBB. Konings é Colunista do Dom Total. A produção do Roteiro Homilético é de responsabilidade direta do Pe. Jaldemir Vitório SJ, Reitor e Professor da FAJE.)



Roteiro Homilético 6 - Liturgia: Pe. Françoá Costa
Valorizando o interior do homem



“É do interior dos homens que procedem os maus pensamentos: devassidões, roubos assassinatos, adultérios, cobiças, perversidades, fraudes, desonestidade, inveja, difamação, orgulho e insensatez” (Mc 7,21-22). Como é importante, portanto, purificar o coração. Caso não cuidemos o nosso coração, ele poderia endurecer e Jesus nos diria, com razão, que nós pensamos diferente dele “devido à dureza do vosso coração” (Mc 10,5). A tradição cristã sempre gostou de resumir a atitude que devemos ter para com o Espírito Santo numa só palavra: docilidade! Um coração dócil sempre recebe com alegria a mensagem de Jesus e de sua Igreja, produzindo frutos abundantes.

Já no Antigo Testamento, o Espírito Santo havia dito por boca do salmista: “Não endureçais o vosso coração” (Sal 94,8). Poderia acontecer também que tivéssemos – em lugar de um coração endurecido – um coração mole. Quanto se diz que uma pessoa é toda coração ou que ela é “boazinha” demais, no fundo o que se quer dizer é que essa pessoa tem um caráter débil ou, com outras palavras, é uma pessoa sem caráter. O cristão foge destes dois extremos: coração endurecido, coração molenga.

Há pessoas que se dizem a favor do divórcio porque “já é normal, ninguém liga mais para isso”, outras dizem que são a favor das relações pré-matrimoniais porque “já é normal, todo mundo faz”; outras ainda são a favor do aborto porque “já é normal, estamos num mundo moderno”, outras se dizem a favor da legalização dos “casamentos” de pessoas do mesmo sexo porque “já é normal, os países modernos já não põem barreiras” etc. Estes são alguns exemplos ou da falta de conhecimento ou do endurecimento do coração.

Jesus continua a recordar-nos que “no começo não foi assim” (Mt 19,8), isto é, no plano originário de Deus não foi assim, não é assim e não pode ser assim!

Frequentemente, antes desse estado de endurecimento do coração encontra-se uma disposição que provém da falta de ideias claras e de critérios retos. Daí a importância da formação do coração. A Igreja Católica quer formar; ela não quer impor nada a ninguém, o que ela faz é propor a verdade… Aceita quem quer! Contudo, está em jogo a própria felicidade terrena e eterna. Você decide!

O coração humano tem que formar-se no Coração de Cristo. Nós, cristãos, precisamos mostrar aos nossos contemporâneos o Homem perfeito e Deus perfeito, Jesus Cristo. Não mostraremos uma caricatura de “deus”: o cristianismo sempre apresentou o “Cristo crucificado (…), força de Deus e sabedoria de Deus” (1 Cor 1,23-24).

Um coração dócil – sinônimo de pessoa dócil – é aquele que se encontra aberto à verdade, ao bem, à beleza. Encontra-se aberto, portanto, a Deus: verdade, bondade e beleza eterna. Essa abertura verdadeira a Deus nos pedirá uma mudança, uma conversão constante. No caso do cristão, é necessário que o seu coração esteja crucificado com Cristo para com ele ressuscitar. Para viver na verdade de Deus é importante que adaptemos nossa vida à sua verdade, posto que o contrário não acontece: Deus não pode mudar a sua verdade, que é ele mesmo, por causa da nossa mentira. Deus não se engana nem nos engana!

Peçamos a Nossa Senhora, Virgem fiel, que nos faça sinceros, dóceis, alegres e cheios de paz. Desta maneira passaremos por esse mundo mostrando as rosas maravilhosas que tem o cristianismo, ainda que sintamos os espinhos das mesmas penetrando a nossa carne. Cristianismo sem cruz é ilusão, não existe!

Vinde Espírito Santo e fazei que apreciemos retamente todas as coisas!

O Evangelho: nem moderno demais, nem velho demais; simplesmente perene!



Roteiro Homilético 7 - Liturgia: Mons. José Maria Pereira
O que mancha o homem

O Evangelho (Mc 7, 1-8. 14-15. 21-23) mostra quando os fariseus e alguns mestres da Lei se reuniram em torno de Jesus e lhe perguntaram por que os discípulos não seguiam a tradição dos antigos, mas comiam o pão sem lavar as mãos. Jesus, citando Isaías, lhes respondeu que eles eram um povo que O honrava com os lábios, mas seu coração estava longe dele. De nada adianta o culto que prestavam, pois as doutrinas que ensinavam eram preceitos humanos. E concluiu, dizendo que eles tinham abandonado o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens.

E, disse Jesus, que o que torna impuro o homem não é o que entra nele, vindo de fora, mas o que sai de seu interior. Pois é de dentro do coração humano que saem as más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, etc…

Deus olha o interior das pessoas e não as práticas exteriores e formais.

É hipocrisia lavar escrupulosamente as mãos ou dar importância a qualquer outra exterioridade, se o coração estiver cheio de vícios.

As ações do homem procedem do coração. E se este está manchado, o homem inteiro fica manchado.

Jesus rejeita a mentalidade que se ocultava por trás daquelas prescrições desprovidas de conteúdo interior, e ensina-nos a amar a pureza de coração, que nos permitirá ver a Deus no meio das nossas tarefas.

“Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8).

A pureza de alma – castidade e retidão interior nos afetos e sentimentos- tem que ser plenamente amada e procurada com alegria e com empenho, apoiando-nos sempre na graça de Deus. Só pode ser alcançada mediante uma luta positiva e constante, prolongada ao longo de uma vida que se mantém vigilante pelo exame de consciência diário; também fruto de um grande amor à Confissão frequente bem feita, mediante a qual o Senhor nos purifica e nos “lava” o coração, cumulando-nos da sua graça.

Com a ajuda da graça, é tarefa de todos os cristãos mostrar, com uma vida limpa e com a palavra, que a castidade é uma virtude essencial a todos – homens e mulheres, jovens e adultos-, e que cada um deve vivê-la de acordo com as exigências do estado a que o Senhor o chamou; “é exigência de amor. É a dimensão da sua verdade interior no coração do homem, e sem ela não seria possível amar nem a Deus nem aos outros” (Beato João Paulo II).

Essa pureza cristã, a castidade, sempre constituiu uma das glórias da Igreja e uma das manifestações mais claras da sua santidade. Hoje, como nos tempos dos primeiros cristãos, muitos homens e mulheres procuram viver a virgindade e o celibato no meio do mundo – sem serem mundanos -, por amor do Reino dos Céus (Mt 19,12). E uma grande multidão de esposos cristãos vivem santamente a castidade segundo o seu estado matrimonial. Como ensina a Igreja: “tanto o matrimônio como a virgindade e o celibato são dois modos de expressar e de viver o único mistério da Aliança de Deus com o seu povo” (Familiaris Consortio, 16).

Façamos como oração, como jaculatória, a prece que a liturgia dirige ao Espírito Santo, na festa de Pentecostes: “Limpa na minha alma o que está sujo, rega o que se tornou árido, sem fruto, cura o que está doente,dobra o que é rígido, aquece o que está frio, dirige o que se extraviou.”

Sozinhos nós  não somos capazes de purificar nosso coração das intenções más e de nos abrirmos de modo justo à novidade do Espírito: devemos confiar-nos, para tanto, à força redentora de Cristo que se torna operante em nós, na Eucaristia… Graças à Eucaristia, podemos dizer com ainda maior razão aquilo que dizia Moisés: “Qual é a grande nação cujos deuses lhe são tão próximos, como o Senhor nosso Deus?” (Dt 4,7).

No mês da Bíblia, intensifiquemos a leitura, a meditação, da Palavra de Deus! Possamos acolhê-La e colocá-La em prática! Ensina São Tiago: “Sede praticantes da Palavra e não meros ouvintes, enganando-vos a vós mesmos” (Tg 1,22).

Como ensinava S. Francisco de Assis: “O homem vale o que é diante de Deus e nada mais.” Jesus desloca todo o sentido da  lei do exterior para o interior, da boca para o coração, de “fora” do homem para “dentro” do homem, como diz retomando uma expressão de Isaías: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim…” (Mc 7,6).

A quem dirige Jesus todas essas observações? Somente aos fariseus de seu tempo? Não! Diz-nos Jesus: “Escutai, TODOS, e compreendei…” (Mc 7,14).



Roteiro Homilético 8 - Liturgia: D. Anselmo Chagas de Paiva, OSB presbíteros.org


Roteiro Homilético 9 - Liturgia: Roteiro presbíteros.org
RITOS INICIAIS



Salmo 85, 3.5

ANTÍFONA DE ENTRADA: Tende compaixão de mim, Senhor, que a Vós clamo o dia inteiro. Vós, Senhor, sois bom e indulgente, cheio de misericórdia para àqueles que Vos invocam.



Introdução ao espírito da Celebração



É bom celebrar o encontro com o Deus da vida, do amor e da sabedoria. Ele está atento a todos os homens e mulheres que sofrem no seu corpo ou no seu espírito. Ele é o Deus do amor, da beleza e da dignidade.

A palavra de Deus convida-nos a saber escutar, a observar, a pôr em prática.

Cristo convida-nos à beleza interior, ao acolhimento sincero e coerente da novidade do seu projecto.

Ao termos consciência deste encontro de amor, santidade e vida, que o Espírito Santo, penetre o coração e a inteligência, libertando de toda a hipocrisia, vaidade e soberba. E nos conceda: olhar como Deus olha, ouvir como Deus ouve, falar como Deus fala e amar como Deus ama.



ORAÇÃO COLECTA: Deus do universo, de quem procede todo o dom perfeito, infundi em nossos corações o amor do vosso nome e, estreitando a nossa união convosco, dai vida ao que em nós é bom e protegei com solicitude esta vida nova. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.





LITURGIA DA PALAVRA



Primeira Leitura



Monição: «Agora escuta»! Deus fala propondo a sua Palavra de amor, os seus mandamentos de vida e sabedoria. «Observai-os e ponde-os em prática».



Deuteronómio 4, 1-2.6-8

Moisés falou ao povo, dizendo: 1«Agora escuta, Israel, as leis e os preceitos que vos dou a conhecer e ponde-os em prática, para que vivais e entreis na posse da terra que vos dá o Senhor, Deus de vossos pais. 2Não acrescentareis nada ao que vos ordeno, nem suprimireis coisa alguma, mas guardareis os mandamentos do Senhor vosso Deus, tal como eu vo-los prescrevo. 6Observai-os e ponde-os em prática: eles serão a vossa sabedoria e a vossa prudência aos olhos dos povos, que, ao ouvirem falar de todas estas leis, dirão: ‘Que povo tão sábio e tão prudente é esta grande nação!’ 7Qual é, na verdade, a grande nação que tem a divindade tão perto de si como está perto de nós o Senhor, nosso Deus, sempre que O invocamos? 8E qual é a grande nação que tem mandamentos e decretos tão justos como esta lei que hoje vos apresento?»



A leitura é tirada da parte final do 1º discurso de Moisés; tem o aspecto duma espécie de introdução ao corpo legislativo central do Deuteronómio, num vivo apelo à observância da Lei.

7-8 «Qual é a grande nação…?» A superioridade de Israel sobre as grandes nações não reside no poderio militar, no valor e cultura do seu povo. Ele é incomparavelmente superior a todos os povos pelas relações tão estreitas com a divindade, pela elevadíssima noção que tem dum Deus único e transcendente, misericordioso e providente e, por outro lado, pela elevação da sua moral, das suas «leis e preceitos» (v. 1). Mas tudo isto – um poderoso motivo de credibilidade da sobrenaturalidade da sua religião – de nada aproveita se o povo não cumprir (v. 6) aqueles mesmos mandamentos que o tornam grande no meio dos outros povos.



Salmo Responsorial

Sl 14 (15), 2-3a.3cd-4ab.5 (R. 1a)



Monição: Na casa do Senhor habitará o que ama a Deus e ao próximo, o que vive na justiça, na verdade e faz da vida partilha.



Refrão:         QUEM HABITARÁ, SENHOR, NO VOSSO SANTUÁRIO?



Ou:                ENSINAI-NOS, SENHOR:

QUEM HABITARÁ EM VOSSA CASA?



O que vive sem mancha e pratica a justiça

e diz a verdade que tem no seu coração

e guarda a sua língua da calúnia.



O que não faz mal ao seu próximo

nem ultraja o seu semelhante,

o que tem por desprezível o ímpio,

mas estima os que temem o Senhor.



O que não falta ao juramento, mesmo em seu prejuízo,

e não empresta dinheiro com usura,

nem aceita presentes para condenar o inocente.

Quem assim proceder jamais será abalado.



Segunda Leitura



Monição: Acolher a Palavra em nós plantada é tarefa de cada um. Ela nos transforma em pessoas autênticas, coerentes, nos faz próximos, nos faz viver a verdadeira religião.



Tiago 1, 17-18.21b-22.27

Caríssimos irmãos: 17Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto, descem do Pai das luzes, no qual não há variação nem sombra de mudança. 18Foi Ele que nos gerou pela palavra da verdade, para sermos como primícias das suas criaturas. 21bAcolhei docilmente a palavra em vós plantada, que pode salvar as vossas almas. 22Sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes, pois seria enganar-vos a vós mesmos. 27A religião pura e sem mancha, aos olhos de Deus, nosso Pai, consiste em visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e conservar-se limpo do contágio do mundo.



Começamos hoje, durante 5 domingos, a fazer uma leitura respigada da Epístola de S. Tiago. Como escrito tipicamente moral e didáctico que é, não obedece a um plano doutrinal previamente elaborado, sucedendo-se os temas ao correr da pena, sempre com a preocupação dominante de fazer um forte apelo a que os fiéis vivam o espírito cristão em todas as circunstâncias, de um modo coerente com a fé, em perfeita unidade de vida: o comportamento dos cristãos tem de ser um reflexo da sua fé.

17. «Pai das luzes» pode querer dizer, Pai dos astros (luminares: cf. Salm 136,7-9); estes mudam de posição e de luminosidade, em contraste com o seu Criador, «no qual não há variação nem sombra de mudança».

18. «Nos gerou (cf. Jo 1, 12-13; 3, 3; 1 Pe 1, 23; Tt 3, 5; 1 Jo 3, 9; 4, 7; 5, 1.4.18) pela palavra da verdade», isto é, pelo anúncio do Evangelho (cf. Ef 1, 13; 2 Cor 6, 7; 2 Tim 2, 15); para sermos primícias das suas criaturas: assim como os primeiros frutos da terra pertenciam a Deus (cf. Ex 22, 28-29; Lv 23, 10-14; Nm 15, 20-21; Dt 18, 4), assim também os cristãos, como início da humanidade renovada (cf. Apoc 14, 4; 21, 1; Rm 8, 19-23).

19-27 Nestes versículos, de que a leitura litúrgica extrai apenas uma pequena amostra, enumeram-se exigências para que a Palavra produza todo o seu fruto, com uma provável alusão à parábola do semeador (v. 21b: «a palavra em vós plantada» – cf. Mt 13, 4-30 par). Trata-se de viver numa absoluta coerência com a nova condição de filhos de Deus (v. 18) e com o Evangelho, o ponto fulcral da exortação que constitui este escrito: «sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes» (v. 22).

27 «A religião pura…» As obras de misericórdia fazem parte da essência da vida cristã (cf. Mt 25, 31-46; 1 Tm 5, 3-8).



Aclamação ao Evangelho

Tg 1, 18



Monição: A coerência da vida e a sua autenticidade- nas exigências do encontro com Cristo e da sua Boa Nova- provoca em nós um coração novo e uma sabedoria que nos permite ver como Deus vê.



ALELUIA



Deus Pai nos gerou pela palavra da verdade,

para sermos como primícias das suas criaturas.





Evangelho



São Marcos 7, 1-8a.14-15.21-23

Naquele tempo, 1reuniu-se à volta de Jesus um grupo de fariseus e alguns escribas que tinham vindo de Jerusalém. 2Viram que alguns dos discípulos de Jesus comiam com as mãos impuras, isto é, sem as lavar. 3Na verdade, os fariseus e os judeus em geral não comem sem ter lavado cuidadosamente as mãos, conforme a tradição dos antigos. 4Ao voltarem da praça pública, não comem sem antes se terem lavado. E seguem muitos outros costumes a que se prenderam por tradição, como lavar os copos, os jarros e as vasilhas de cobre. 5Os fariseus e os escribas perguntaram a Jesus: «Porque não seguem os teus discípulos a tradição dos antigos, e comem sem lavar as mãos?» 6Jesus respondeu-lhes: «Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas, como está escrito: 7‘Este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de Mim. É vão o culto que Me prestam, e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos’. 8aVós deixais de lado o mandamento de Deus, para vos prenderdes à tradição dos homens». 14Depois, Jesus chamou de novo a Si a multidão e começou a dizer-lhe: «Ouvi-Me e procurai compreender. 15Não há nada fora do homem que ao entrar nele o possa tornar impuro. O que sai do homem é que o torna impuro; 21porque do interior dos homens é que saem os maus pensamentos:22imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez. 23Todos estes vícios saem lá de dentro e tornam o homem impuro».



O texto evangélico não visa simplesmente dar a notícia de uma controvérsia, descrevendo o modo como Jesus se desenvencilhou da situação, ou relatar a oposição e conflito que começava a esboçar-se com as autoridades judaicas; aqueles «fariseus e alguns escribas, que tinham vindo de Jerusalém», viriam mandatados pelo Sinédrio. A intenção que preside ao relato é pôr em evidência o ensino de Jesus acerca da verdadeira pureza, do valor relativo das leis e tradições humanas e de como o elemento mais decisivo para a configuração moral do agir humano é a interioridade da pessoa, dando assim um golpe mortal no mero formalismo exterior.

1-13 Estes vv. referem a controvérsia a propósito de os discípulos de Jesus comerem sem lavar as mãos: é que estava a ser posta em causa a tradição dos antigos. S. Marcos explica brevemente os preceitos judaicos relativos a purificações (vv.3-4), pois escreve para cristãos que na maioria não são de origem judaica. Note-se que estes preceitos não constam de parte nenhuma do A. T.; a «tradição dos antigos» (v. 5), à letra, «dos mais velhos» (um título honorífico para célebres doutores da lei), pertencia à chamada «Lei oral», que os escribas, para imporem novas prescrições, faziam crer que fora revelada por Deus a Moisés, tão obrigatórias como a Lei escrita do A. T. e que só vieram a ser compiladas por escrito na Mixná (repetição), por fins do séc. II p. C. A 6ª ordem desta obra, dividida em 12 tratados, era toda ela dedicada às purificações. A generalidade do povo não fazia caso da purificação das mãos antes de comer, pois considerava que esta só obrigava os sacerdotes no exercício do culto (cf. Ex 30, 17-21). Jesus, com a citação de Is 29, 13, não só denuncia um culto sem alma, feito de exterioridades ocas e vazias, mas também censura abandono da lei de Deus em troca do zelo por preceitos humanos (v. 8; a leitura suprimiu as especificações dos vv. 9-13).

14-15 Nesta secção, só indirectamente ligada à anterior, Jesus dirige-se agora à «multidão» num ensino através de uma parábola, ou melhor de um enigma, que obriga a reflectir em que consiste a autêntica pureza; já não se trata apenas de superar tradições e convencionalismos humanos, mas de abandonar uma mentalidade que não faz a destrinça entre o bem e o mal; só o pecado é que torna o homem impuro, e não pode haver pecado sem um querer deliberado, mau e desordenado. E não é apenas a tradição dos escribas e fariseus que é ultrapassada, mas a lei ritual do A. T., que declarava as pessoas impuras por grande quantidade de coisas de que se não tinha qualquer espécie de culpa. Estamos aqui na novidade da Lei de Cristo e perante uma moral de amor e responsabilidade.

21-23 Estes vv. pertencem à explicação particular e bem realista dada aos discípulos (vv. 17-23; os vv. 16-20 são omitidos na leitura). A moral cristã está no pólo oposto de todo o formalismo. É só «do coração», isto é, da vontade livre, que provém o que contamina o homem moralmente. Sem conhecimento e deliberação não pode haver propriamente pecado.

Note-se que Marcos apresenta imediatamente a seguir Jesus em terras gentias, na região de Tiro e Sídon, e a entrar numa casa pagã, sem fazer caso da impureza legal em que incorria (v. 24).



Sugestões para a homilia



Os mandamentos, exigência de amor.

A proposta da coerência e verdade.

Os desafios de Hoje.

Os mandamentos, exigência de amor.

A Palavra de Deus como proposta para este Domingo leva-nos a saborearmos o convite a uma vida de autenticidade, verdade e coerência. E tudo como consequência de uma relação de amor com o Deus vivo que penetra a verdade de cada pessoa e de cada acontecimento.

No relativismo moral, na indiferença para com Deus, na justificação para o injustificável, na vivência da duplicidade e hipocrisia, quão importante são os Mandamentos de Deus! São expressão de vida, de sabedoria e santidade.

Na tentação de sobrepor os nossos «códigos», a ignorância que dispensa a Graça de Deus, as nossas perspectivas – muitas vezes até humanamente pobre – é necessário anunciar os Mandamentos e vivê-los.

Os Mandamentos são pedagogia divina a levar a Palavra à vida, aí onde as opções e as atitudes devem encontrar o seu carácter de profundidade do mistério da pessoa, da vida e da actuação de Deus em nós, e do seu projecto de amor.

Só a Palavra de Deus, referência de vida, pode descer ao mais profundo da verdade do ser humano e permitir a sua transformação, conversão e uma vida de transparência.

Só a novidade que é Cristo permite ser livre. Permite uma humanidade cheia de dignidade. Permite uma nova e bela relação com Deus. Cristo liberta e leva as pessoas a viver com intensidade o amor de Deus e dos irmãos. Só Ele liberta de todas as barreiras, muros e preconceitos.

A proposta da coerência e verdade.

Deus não teme a pessoa autêntica, humilde, sincera, mesmo que revele a sua fragilidade.

Deus não «suporta» o soberbo, o hipócrita, os que exteriormente se esforçam por dar nas vistas, mas numa ausência de total desejo de conversão. Dos que impedem a novidade do Espírito que tem poder de fazer de um pecador um santo, do Espírito que cria e recria!

A tentação da «carreira» tem gerado vida hipócrita e autênticos campos de destruição da beleza da vida dos outros, da sua simples e esforçada doação. Tem gerado clamorosas injustiças. Tem impedido a novidade do Espírito.

Mas também, às vezes, há o gosto de apostar no exterior, no «curriculum» pesado e alargado, como as «filactérias», mas que depois se revela ausência de amor, de compreensão e de misericórdia. É quase como uma tentação de apostar no ser humano apetrechado em tudo, como se dispensássemos a graça de Deus e o mistério do Sua presença encantadora e da surpresa e novidade do Espírito.

Na proposta de coerência, verdade e autenticidade é bem essencial amar e viver os Mandamentos como consequência da relação pessoal com Jesus Cristo.

Em e com Jesus aprendemos a ser livres, a amar verdadeiramente, a ver como Deus vê, a fazer da vida doação aos mais pequeninos e fracos, a dar as mãos aos que erraram e fracassaram na vida, a propor uma religião verdadeira e autêntica.

Os desafios de Hoje.

Se nós cristãos vivêssemos com autenticidade e coerência o nosso cristianismo encheríamos os nossos espaços e tempos com a encantadora e bela presença de Jesus Cristo. Como Ele aparece tantas vezes desfigurado, não tendo no Seu rosto beleza que atraia o ser humano!

É preciso observar e pôr em prática os Mandamentos, revelação da beleza de uma vida comprometida com o projecto de Deus.

Por isso, em Ano Sacerdotal, tendo como referência o Santo Cura d’Ars, significa construir atitudes de santidade e confiança e correspondência ao «bem que Deus em nós começou».

Significa orar verdadeiramente a vida para aí estabelecer coerência, edificar na verdade, robustecer-se na graça de Deus, comprometer-se com a vida, com Deus e com os irmãos.

Há sinais que são tradutores da coerência, de vidas sem hipocrisia: a celebração pessoal e sincera do sacramento da confissão. A clareza do projecto de Jesus Cristo, sem fugas, subterfúgios, nas exigências da Verdade. Olhar a Igreja como Mistério de Comunhão e não olhá-la com os esquemas de «empresa», de visões verdadeiramente humanas. E nesta linha desmascarar todas as tentativas de desfiguração que corrompe a justiça, a verdade, a dignidade. A urgência de se falar da Graça de Deus e da sua necessidade. Isto não é só «obra» nossa, mas graça que deve ser acolhida, agradecida e comprometida.

A Igreja apostou em Santo Agostinho, convertido. Fez dele um Bispo Santo! Será que estaremos presos a tantos preconceitos que nos impedem de ver a beleza que Deus opera, as transformações maravilhosas que realiza na vida de tantas pessoas? O Cura d’Ars foi novidade do Espírito. Nos preconceitos de muitos nunca este Sacerdote seria significativo na Igreja! E somos capazes de acolher e apostar? Damos hipóteses aos irmãos. Pesam mais em nós os defeitos ou a riqueza de coração e a beleza da vida?

Muitas vezes gastamos energias em futilidades. Gastamos meios económicos em vaidades de promoção. Criamos Espírito de competição para «arrumar» quem nos faz frente ou para «encher» o que só o espírito de oração e penitência podem encher! Criamos máquinas pesadas incapazes de descobrir a beleza da simplicidade de Cristo e do seu projecto.

Maria, Rainha de todos os cristãos ensina-nos a amar e a servir a Deus e aos irmãos com a verdade, com coerência e com a partilha da nossa vida. Ensina-nos a pôr em primeiro lugar o Amor a Deus e aos irmãos.





LITURGIA EUCARÍSTICA



ORAÇÃO SOBRE AS OBLATAS: Santificai, Senhor, a oferta que Vos apresentamos e realizai em nós, com o poder da vossa graça, a redenção que celebramos nestes mistérios. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.



SANTO



Monição da Comunhão



Aceitar o desafio de comungar Jesus Cristo, Filho de Deus e Filho de Maria, exige de nós coerência, dinamismo e compromisso de amor a Deus e ao próximo.

Ser discípulo de Jesus Cristo implica aprender com Ele. Como Ele aprender a Olhar e a Julgar, no dinamismo potente do amor que se faz coerência, beleza interior e doação.





Salmo 30, 20

ANTÍFONA DA COMUNHÃO: Como é grande, Senhor, a vossa bondade para aqueles que Vos servem!



Ou

Mt 5, 9-10

Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus. Bem-aventurados os perseguidos por amor da justiça, porque deles é o reino dos céus.

ORAÇÃO DEPOIS DA COMUNHÃO: Senhor, que nos alimentastes com o pão da mesa celeste, fazei que esta fonte de caridade fortaleça os nossos corações e nos leve a servir-Vos nos nossos irmãos. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.





RITOS FINAIS



Monição final



O Mundo só tem necessidade dos Cristãos na medida em que eles se esforçam por ser santos, isto é, se esforçam por viver de acordo com os Mandamentos de Deus, como expressão de Amor a Deus e ao próximo.

Tem necessidade de Cristãos que pela coerência, beleza interior e compromisso de vida revelam a beleza do amor de Deus. E como consequência deste amor de Deus revelam a profundidade do ser humano e trilham caminhos de justiça, dignidade e vida.





HOMILIAS FERIAIS



22ª SEMANA



2ª Feira, 3-IX: Acompanhar o Senhor.

1Tes 4, 13-18 / Lc 4, 16-30

Se, como acreditamos, Jesus morreu e ressuscitou, assim também levará com Jesus aqueles que tiverem morrido em união com Ele.

«Viver no Céu é ‘estar com Cristo’ (Leit). Os eleitos vivem n’Ele; pois n’Ele se conservam, ou melhor, encontram a sua verdadeira identidade, o seu nome próprio» (CIC, 1025).

Os frequentadores da sinagoga, pelo contrário, não quiseram a companhia de Jesus e expulsaram-no da cidade. Em desagravo por esta atitude de tantos nos nossos dias, não deixemos de lhe fazer mais um pouco de companhia: uma visita ao Sacrário, comunhões espirituais, actos de desagravo, oferecimento do trabalho, etc.



3ª Feira,4-IX: Libertação da escravidão.

1 Tes 5, 1-6. 9-11 / Lc 4, 31-37

Encontrava-se então na sinagoga um homem que tinha o espírito de um demónio impuro.

Este homem, que tinha o espírito impuro (cf Ev), representa o pecador que se quer converter a Deus e que tem que se libertar da escravidão do pecado. No Pai-nosso pedimos a Deus que nos livre do mal: «Ao pedirmos para sermos libertados do Maligno, pedimos igualmente para sermos livres de todos os males presentes, passados e futuros» (CIC, 2853).

A nossa esperança está na morte de Cristo: «Cristo morreu por nós, para que, vivos ou mortos, cheguemos à vida em união com Ele» (Leit).



4ª Feira, 5-IX:Através do Evangelho escutamos o Senhor.

Col 1, 1-8 / Lc 4, 38-44

Tenho de ir às outras cidades para anunciar a Boa Nova do reino de Deus, porque para isto é que fui enviado.

A Boa Nova, que Jesus tinha que anunciar, é a mesma que encontramos nas Leituras, proclamadas na celebração eucarística. S. Paulo alegra-se por o Evangelho ter chegado à comunidade de Colossas (Leit).

«Quando na Igreja se lê a Sagrada Escritura é o próprio Deus que fala ao seu povo, é Cristo presente na sua palavra que anuncia o Evangelho» (SC, 45). Dando bom testemunho verificar-se-á que: «o Evangelho tem estado a frutificar e a desenvolver-se» (Leit).



5ª Feira,6-IX: Procurar agradar a Deus.

Col 1, 9-14 / Lc 5, 1-11

Não temos deixado de orar por vós e de pedir que chegueis a conhecer plenamente a vontade de Deus.

Ao rezarmos o Pai-nosso pedimos a Deus que o seu plano se realize por completo na terra, como no Céu. «Foi em Cristo e pela sua vontade humana que a vontade do Pai se cumpriu perfeitamente e de uma vez para sempre…Só Jesus pode dizer: ‘Faço sempre o que é do seu agrado’» (CIC, 2824).

S. Paulo recomenda igualmente que procuremos agradar ao Senhor em tudo (cf Leit). Simão Pedro descobre a vontade de Deus e cumpre-a, ainda que, ao princípio não a entenda (cf Ev).



6ª Feira, 7-IX: Restaurar a imagem de Deus em nós.

Col 1, 15-20 / Lc 5, 33-39

Cristo é a imagem do Deus invisível, é quem tem a primazia sobre todas as criaturas.

«Foi Em Cristo, ‘imagem do Deus invisível’ (Leit), que o homem foi criado à imagem e semelhança do Criador. Assim como foi em Cristo, redentor e salvador, que a imagem divina, deformada pelo homem pelo primeiro pecado, foi restaurada na sua beleza original e enobrecida pela graça de Deus» (CIC, 1701).

Colaboraremos nesta restauração da imagem divina não empregando ‘remendos velhos’ (cf Ev), mas recorrendo à Confissão sacramental, recebendo o Senhor na Comunhão, lendo e meditando o Evangelho.



Sábado, 8-IX: A reconciliação de Deus com os homens.

Col 1, 21-23 / Lc 6, 1-5

Mas agora, Deus reconciliou-nos consigo, pela morte de Cristo no seu Corpo de carne, para nos apresentar diante d’Ele santos.

«Pelo sangue da sua Cruz, Ele, levando em si próprio a morte à inimizade (cf Leit), reconciliou Deus com os homens e fez da sua Igreja o sacramento da unidade do género humano e da sua união com Deus» (CIC, 2305).

Para que tal aconteça, S. Paulo aponta duas condições: a primeira uma fé sólida e firme, apoiada nos ensinamentos de Cristo e da Igreja; a segunda, a esperança no Evangelho (recordando todas as promessas de Cristo sobre a vida eterna: bem-aventuranças, Eucaristia, etc.).

Roteiro Homilético 10 - Liturgia: comentário exegético presbíteros.org

EPÍSTOLA (Tg 1, 17-18.21b,22-27)

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)



INTRODUÇÃO: Chamados como primícias da palavra, não devemos unicamente contentar-nos em ouvi-la. Ela deve ser a razão da nossa conduta, para não sermos mera especulação como homens que se olham no espelho, e imediatamente esquecem qual foi sua figura. Pois a religião verdadeira é aquela que cuida dos necessitados e se vê livre das atrações e tentações do mundo.

     DEUS AUTOR DE TODO BEM: Toda dádiva boa e todo dom perfeito é do alto descendendo do Pai das luzes para o qual não há mudança nem sombra de variação (17). Omne datum optimum et omne donum perfectum desursum est descendens a Patre luminum apud quem non est transmutatio nec vicissitudinis obumbratio. DÁDIVA [dosis<1394>=datum] como em Fp 4, 15: Nenhuma igreja comunicou comigo com respeito a dar e a receber, senão vós somente. DOM [dörema<1434>=donum]: em ambos os casos o adjetivo indica bondade- agathë [boa] e teleion [perfeito]- que unicamente tem como causa eficiente o Pai. Por isso, fala de que a sua procedência é do alto, onde se entendia estava a divindade. Do PAI DAS LUZES [tou Patros<3962> tön fötön<5457>=a patre luminum] Deus é luz, pois esta é a mensagem que dele ouvimos, e vos anunciamos: que Deus é luz, e não há nele trevas nenhumas (1 Jo 1,5). Deus é o autor das luzes, das corporais como o sol, a lua, as estrelas já que no Gênesis criou a luz (Gn 1, 3), mas também das constelações do dia e da noite  (idem 14) e das estrelas  (idem 16) de modo que a ausência divina são as trevas, não unicamente materiais, mas também do espírito; luz que os homens rejeitaram porque amaram mais as trevas (Jo 3, 19). Sempre que aparece, é visto rodeado de luz como na nuvem do Tabor (Mt 17, 5), ou as vestes de seus anjos ou mensageiros (Lc 24, 4). Sendo plena luz, Tiago pode afirmar que nEle, Deus, não há variação ou sombra de intensidade. Os astros, o sol e especialmente a lua estavam sujeitos às variações de luz. Eram criaturas com os defeitos da imperfeição e caducidade que acompanham as mesmas.

CRIAÇÃO DO HOMEM: Voluntariamente nos criou com palavra de verdade para sermos princípio de qualquer das suas criaturas (18). Voluntarie genuit nos verbo veritatis ut simus initium aliquod creaturae eius. VOLUNTARIAMENTE [boulëtheis<1014>=voluntarie]: em Lc 22, 42 encontramos o mesmo verbo com o significado de querer: ninguém conhece o Pai, senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar. De modo que podemos traduzir: unicamente pelo seu bem querer nos criou, COM PALAVRA DE VERDADE: seguramente aqui Tiago recorda o Gênesis em que a criação toda começou a existir pela palavra: e disse Deus. Palavra que o apóstolo chama de Verdade porque corresponde à vontade de Deus que sempre tem como finalidade uma determinada ação e não um desejo inacabado. PRINCÍPIO [aparchë <536>=initium]: o latim pode confundir, pois initium refere-se principalmente ao tempo e aqui está considerando a criação do primeiro homem e esse aparchë, cujo significado era o de ser os primeiros frutos a serem consagrados e oferecidos em ação de graças; mas também primeiro como principal. Assim,  Cristo ressuscitou dentre os mortos, e foi feito as primícias dos que dormem (1 Cor 15, 20). Unindo ambas interpretações, podemos pensar que o homem é dentre as criaturas a principal e que deve ser como essência e remate da criação consagrada ao seu Criador.

 A NOVA PALAVRA: Recebei a implantada palavra poderosa para salvar vossas vidas (21). Suscipite insitum verbum quod potest salvare animas vestras. Na leitura epistolar são suprimidos dois versículos e meio, que vamos incluir aqui como parêntesis (sabeis estas coisas meus amados irmãos. Todo homem, pois, seja pronto para ouvir, tardio para falar, tardio para se irar [19]. Porque a ira do homem não produz a justiça de Deus [20]. Portanto, despojando-vos de toda impureza e acúmulo de maldade [21ª]). É uma explicação do versículo anterior em que a palavra ficava um tanto indecisa. Como palavra de Verdade não pode ser a palavra humana que geralmente é palavra de ira, mas palavra divina IMPLANTADA [emfoton<1721>=insitum]  que é um apax e que significa implantar, ou seja, como semeada divinamente por usar a passiva. Palavra que é PODEROSA [dynamenon<1410>=quod potest] para a salvação. Evidentemente essa palavra é a de Jesus, LOGOS [=palavra] do Pai, Filho Unigênito em cujo sacrifício estava a redenção [apolypolitrosis] e cuja carne e sangue eram a comida e bebida da vida. Nisso estava a salvação.

     PRÁTICA DA PALAVRA: Tornai-vos, pois, praticantes da palavra e não só auditores que se iludem a si mesmos(22). Estote autem factores verbi et non auditores tantum fallentes vosmet ipsos. Mas parece que, aqui, é a palavra como saída da boca de Jesus, como anúncio do Reino a que interessa ao nosso autor. PRATICANTES [poiëtai<4163>=factores]: poiëtës é aquele que atua, que opera ou faz. A frase relembra a paulina de Rm 2, 13: Os que ouvem a lei não são justos diante de Deus, mas os que praticam a lei hão de ser justificados. Quem foi primeiro, Paulo ou Tiago a usar a mesma frase? Autores modernos datam esta epístola como o primeiro escrito do Novo Testamento redatado cerca do ano 47, anterior ao Concílio de Jerusalém. Logo Paulo o conhecia e repetiu a frase em seu escrito aos romanos. Porém, ambos os escritos refletem a palavra de Jesus: Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! Entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus (Mt 7, 21).

  EXEMPLO: Porque se alguém é ouvidor da palavra e não a pratica  este se assemelha a um homem considerando o rosto de seu nascimento em (o) espelho (23). Porque contempla a si mesmo e se retirou e, de imediato, se esqueceu como era (24). Quia si quis auditor est verbi et non factor hic conparabitur viro consideranti vultum nativitatis suae in speculo. Consideravit enim se et abiit et statim oblitus est qualis fuerit. Com um exemplo Tiago ilustra a diferença entre o cumpridor da palavra e o simples ouvinte da mesma: este último é como um homem que se olha no espelho [esoptropon<2072>=speculo] e que logo se esquece do rosto que nele se refletiu. Logicamente o espelho é a palavra que compara a vida e costumes do ouvinte com a Lei nova de Cristo. Se o ouvinte nada faz é como se esquecesse o que ouviu e nada tivesse acontecido.

  O QUE REALIZA A PALAVRA:  Mas quem olha para a Lei perfeita da liberdade e permanece, esse não auditor esquecido se tornado, mas fazedor de obra, este bendito em sua obra será (25). Qui autem perspexerit in lege perfecta libertatis et permanserit non auditor obliviosus factus sed factor operis hic beatus in facto suo erit. A imagem do espelho é substituída pela realidade da LEI PERFFEITA DA LIBERDADE [nomon <3551>teleion<5046>tës eleutherias<1657>=lex perfecta libertatis]: Segundo Tiago, não devem os cristãos se queixar [no sentido de levar a juízo?] uns contra os outros, para não serem condenados, pois o juiz está perto (Tg 5, 9). Desta frase deduzimos que a carta foi escrita antes da destruição de Jerusalém, pois fala do ser julgado [verbo krinö] que em sentido bíblico indica condenar que o juiz [kritës] realizará como castigo. E em 2, 12 o mesmo apóstolo fala como devendo ser julgados pela lei da liberdade. Segundo Paulo, os cristãos foram chamados à liberdade (Gl 5,13 ) de modo que a consciência de cada um não deve ser julgada pela consciência do outro (1 Cor 10, 29). Liberdade que, segundo Pedro, não deve ser usada como pretexto de malícia [para fazer o mal], mas vivendo como servos de Deus (1 Pd 2, 16). Disso tudo deduzimos que as leis dos homens, de vossa tradição (M 13, 52) segundo Jesus, não devem ter valor e delas estamos livres pela nova Lei do NT que Tiago diz ser perfeita e que Jesus resume em amar a Deus com toda a alma e ao próximo como a si mesmo (Mt 22, 37), que em João terá como modelo o próprio amor de Cristo (13, 34).

    A LÍNGUA COMO PROVA: Se alguém pensa ser religioso, entre vós, não dominando sua língua, engana seu coração, sua religião é vã (26). Si quis autem putat se religiosum esse non refrenans linguam suam sed seducens cor suum huius vana est religio. Neste ponto, Tiago volta a sua preferente moral que é o domínio da língua. Esta é a cara externa da personalidade de modo que reflete o interior do homem. Como dizia Jesus é do interior que o mal contamina (Mc 7, 20). ENGANA [apatön<538>=seducens] particípio de presente do verbo apataö, enganar, iludir. Se, pois, alguém pensa ser religioso deve dominar sua língua; pois de outro modo esse tal está enganado. Tiago fala do CORAÇÃO [kardia<2588>= cor] que era em tempos de Jesus a origem dos pensamentos e desejos onde não cabiam os alimentos, que iam para o ventre  e, portanto, não podiam impurificá-lo (Mc 7, 19). O que, pois, não domina sua língua é um religioso de religião falsa. Por isso relata na continuação as características da verdadeira religião.

      VERADADEIRA RELIGIÃO: Religião limpa e sem mácula para Deus e Pai é esta: visitar órfãos e viúvas na sua aflição, manter-se incólume do mundo (27). religio munda et inmaculata apud Deum et Patrem haec est visitare pupillos et viduas in tribulatione eorum inmaculatum se custodire ab hoc saeculo. Antes de mais nada, quem deve julgar sobre a verdade de uma religião é Deus, o Pai. E esta tem como distintivo a caridade: visitar órfãos e viúvas, como diz Isaías que parece serem os seres de cuidados especiais do Senhor, que em Dt 27, 19 afirma: Maldito aquele que perverter o direito do estrangeiro, do órfão e da viúva. E todo o povo dirá: Amém. Mas além dessa positividade existe um negativo que não pode ser esquecido: manter-se incólume do mundo. A impureza dos alimentos que só podia atingir o ventre está no NT substituída pela abstenção dos pensamentos e prazeres do mundo. Sabemos que os fariseus tinham como preceitos principais o jejum e os dízimos (Lc 18,12), e como prêmio de suas orações, a riqueza que certamente contraria  o espírito evangélico como orgulho farisaico que se tornava desprezo dos ham haaretz [povo humilde da terra].



EVANGELHO (Mc 7,1-8; 14-15; 21-23)

(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)



LAVAÇÃO COMO PURIFICAÇÃO: E reuniram-se junto a Ele [Jesus] os fariseus e alguns dos escribas vindos de Jerusalém (1). E tendo visto alguns dos discípulos dEle com mãos comuns comendo pães comuns, isto é, sem lavar, censuraram (2). Porque os fariseus e todos os judeus se não lavam até o punho as mãos não comem, conservando a tradição dos anciãos (3).  E depois da praça, se não tomam banho, não comem e outras muitas são as que granjearam guardar: lavados de copos e jarros e chaleiras e leitos (4). Et conveniunt ad eum Pharisaei et quidam de scribis venientes ab Hierosolymis. Et cum vidissent quosdam ex discipulis eius communibus manibus id est non lotis manducare panes vituperaverunt. Pharisaei enim et omnes Iudaei nisi crebro lavent manus non manducant tenentes traditionem seniorum.Et a foro nisi baptizentur non comedunt et alia multa sunt quae tradita sunt illis servare baptismata calicum et urceorum et aeramentorum et lectorum. Os fariseus eram em número de 20 mil e estavam espalhados por toda a Palestina. Já os escribas ou doutores da lei, tinham sua morada principal em Jerusalém. A fama de Jesus e sua rebeldia contra certos preceitos da Lei como o sábado, o tornavam alvo de uma perseguição inquisitorial. Desta vez o objeto de suas intrigas foram os discípulos. COM MÃOS COMUNS [koinais <2839>cherais <5495>=communibus manibus] É uma maneira de dizer que não lavavam as mãos. Havia dois momentos em que todo judeu autêntico devia lavar o corpo ou parte do mesmo: 1o) Antes de uma refeição, especialmente de pão. 2o) Após voltar das ruas da cidade, em cujo caso era necessário tomar um banho. À parte existia o preceito de lavar todos os vasos e recipientes usados na comida e bebida. Eles eram submergidos em água, fria ou quente, dependendo do uso. Para isso existiam, nas casas, recipientes de água de aproximadamente 40 l de capacidade cada um, as talhas de pedra, como vemos em Jo 2, 6. Segundo lemos em autores judeus da época, era necessário lavar as mãos até o cotovelo (batismo como diz Marcos), se a comida era de um sacrifício, ou se partilhava a refeição com um homem idoso; ou se se tratava de pão. E somente os dedos, se a comida era comum. Os escribas afirmavam que se as mãos eram impuras todo o corpo se tornava impuro. Aquele –dizia Rabi Eleazar- que despreza o lavado das mãos devia ser desenraizado da terra, porque na lavação  está o segredo do decálogo. Quem deve ser considerado como um plebeu ou povo ruim? Aquele que não come com limpeza ou pureza legal. Por isso se distingue um judeu de um gentio, na lavagem das mãos. No caso particular de comer o pão (era o nosso pão sírio) sem lavar as mãos, era como se deitar com uma mulher da vida, afirmava Rabi Josef. Os discípulos de Jesus iniciaram sua refeição que era basicamente uma comida consistente em pão de cevada, em forma de um disco de 12 cm de diâmetro e de uma espessura como de um dedo, sem lavar as mãos e talvez sem a bênção de ação de graças. Temos visto o que se pensava em círculos cultos e tradicionais sobre o assunto. A tradição dos antigos, especialmente dos dois chefes das escolas mais famosas da época, Hillel e Shammai, era muita estrita. Rabi Ishmael declarava: “As palavras da lei são palavras que contém tanto proibições como permissões, algumas delas leves, outras graves. Mas as palavras dos escribas todas são graves. As palavras dos escribas são mais pesadas que as dos profetas”. Por isso existia o seguinte conselho: “Aquele que transgride as palavras dos escribas é réu de morte”. Especialmente para comer o pão era necessário lavar as mãos porque o pão era considerado coisa sagrada, já que o pão representava toda comida. Por exemplo, para comer frutas não era necessário o lavado das mãos. Hillel e Shammai foram os que restabeleceram a tradição. Por isso clamavam: “Aquele que abençoa o pão com mãos impuras é réu de morte”. E para ameaçar os espíritos pusilânimes falavam de Shibta, uma sorte de mau espírito, que se assentava nas mãos e na cabeça do transgressor. Rabi Aquiba estava na prisão e preferiu antes morrer que comer sem lavar as mãos e por isso usou o pouco de água que ele tinha para lavar suas mãos antes de beber da mesma. Com estas citações vemos como era importante a matéria que Marcos descreve e que Jesus de modo tão eficiente soluciona. O BATISMO: No versículo 4 fala Marcos de batismo do corpo e dos diversos recipientes. Parece uma exageração, mas na realidade o evangelista só expressa o que era de uso na época. Temos falado do banho corporal após vir das ruas. Mas os diversos recipientes também eram submergidos na água para se purificar. Marcos fala de diversos vasilhames como copos, sextários (= recipientes de 5 litros para vinho e água), vasilhas de bronze, e leitos. Os recipientes de cobre são especialmente nomeados porque se fossem de argila, eram destruídos uma vez tornados impuros. Um exemplo: pratos eram lavados antes do café da manhã, logo antes da refeição do meio-dia e logo antes da ceia noturna. O lavado era uma imersão (batismo) em água. Parece uma exageração o lavado dos reclinatórios nos quais os judeus se recostavam para os banquetes. Mas é uma realidade histórica. Em primeiro lugar todo recipiente comprado de um gentil devia ser submergido para tirar dele a contaminação. As mesas e as camas de madeira também eram incluídas nessa purificação. Especialmente as camas se o dormente morria nela, ou uma mulher menstruada ou um homem com blenorragia deitava nela, ou ainda se tivesse sido a cama de uma parturiente. O sangue derramado tornava impuro o leito. Até os travesseiros, se tinham capa de couro, comum na época, deviam ser purificados submergindo-os em água. A descrição do evangelista é, pois, exata mais do que correta.

A PERGUNTA: Então o interrogam os fariseus e os escribas: por que os teus discípulos não andam segundo a tradição dos anciãos, mas com mãos sem lavar comem o pão?(5) Et interrogant eum Pharisaei et scribae quare discipuli tui non ambulant iuxta traditionem seniorum sed communibus manibus manducant panem? Visto o que temos relatado, o escândalo farisaico era monumental. Como não perguntar ao Mestre, responsável pela educação e moral dos discípulos?

     A RESPOSTA DE JESUS: Ele, pois, tendo respondido lhes disse: que bem profetizou Isaías sobre vós, os hipócritas, como está escrito: Este povo com os lábios me honra, mas o seu coração longe está de mim (6). Em vão, pois, me adoram ensinando ensinamentos prescrevidos pelos homens (7). Porque negligenciando o mandato do Deus, guardais a tradição dos homens: as lavagens [baptismata] de cântaros, e copos e outras muitas similares [vasilhas] fazeis (8). At ille respondens dixit eis bene prophetavit Esaias de vobis hypocritis sicut scriptum est populus hic labiis me honorat cor autem eorum longe est a me. In vanum autem me colunt docentes doctrinas praecepta hominum. Relinquentes enim mandatum Dei tenetis traditionem hominum baptismata urceorum et calicum et alia similia his facitis multa. Jesus distingue perfeitamente entre mandatos (entolë) de Deus e preceitos (entalma) dos homens. Por isso Jesus se queixa como se queixa de seu tempo Isaías, de que os seus conterrâneos honram a  Deus com os lábios, mas seus corações estão longe dEle. E como argumento principal cita o que está escrito em Isaías 29, 13: “O Senhor disse: Visto que este povo se aproxima de mim e com sua boca e com seus lábios me honra, mas o seu coração está longe de mim, e o seu temor para comigo consiste só em mandamentos de homens, que maquinalmente aprendeu…”. A citação servia como anel no dedo, nas circunstâncias.

ADVERTÊNCIA AO POVO: E chamando todo o povo lhes dizia: Escutai-me todos e entendei (14). Nada há fora do homem que entrando dentro dele pode contaminá-lo; mas as procedentes dele, essas  [coisas] são as que contaminam o homem (15). Et advocans iterum turbam dicebat illis audite me omnes et intellegite. Nihil est extra hominem introiens in eum quod possit eum coinquinare sed quae de homine procedunt illa sunt quae communicant hominem.

O INTERIOR DO HOMEM: Porque de dentro do coração dos homens os pensamentos, os malignos, surgem: adultérios, fornicações, homicídios (21). Furtos, avarezas, maldades, engano, licenciosidade, olho maldoso, blasfêmia, soberba, insensatez (22). Ab intus enim de corde hominum cogitationes malae procedunt adulteria fornicationes homicidia. furta avaritiae nequitiae dolus inpudicitia oculus malus blasphemia superbia stultitia. Na leitura da epístola faltam os versículos 16-20. Neles Jesus explica aos discípulos por que o que entra do exterior não pode contaminar o homem: porque entra via digestiva e passa pelo ventre sem que tenha contato algum com o coração, órgão do sentimento e da inteligência. É dentro desse coração que as coisas se contaminam, pois é onde surgem os PENSAMENTOS [dialogismoi<1261>=cogitationes] os que são MALIGNOS [kakoi<2556>=malae] e além disso, Jesus cita outras maldades frequentes entre os homens: ADULTÉRIOS [moicheiai <4202> =adulteria] FORNICAÇÕES [porneiai <4202> = fornicationes] HOMICÍDIOS [fonoi<5408>=homicidia] FURTOS [klopai<2829>=furta] AVAREZAS [pleonexia] <4142> =avaritiae],ENGANO[dolos<1388>=dolus], LICENCIOSIDADE [aselgeia<766>=impudicitia] ou lascívia, OLHO MAU [ofthalmos <3788> ponëros<4190>=oculus malus] que traduzem por inveja, BLASFÊMIA [blasfëmia <988> =blasphemia], SOBERBA [yperëfania <5243> =superba], INSENSATEZ [afrosynë<877>  =stultitia]. A enumeração dos vícios e maldades é quase exaustiva.

OS CONTAMINANTES VERDADEIROS: Todas estas coisas más de dentro surgem e contaminam o homem (23). Omnia haec mala ab intus procedunt et communicant hominem. Esta é a conclusão verdadeira que remata o razoamento de  Jesus: o que provém de fora não contamina o homem; mas é de dentro que aceitando e animando sentimentos malignos o homem se torna efeito e causa do mal. Se a repreensão anterior era dirigida aos fariseus, agora Jesus se dirige ao povo: Escutai todos e entendei. Era uma lição magistral que Jesus exige ser bem assimilada. Nada de fora pode contaminar, ou tornar impuro um homem, entrando nele. Mas o que sai de dentro do mesmo, é o que o suja e envilece. Com isto Jesus declara nulas todas as leis de impureza ao mesmo tempo em que afirma que a impureza nada tem a ver com o pecado. A impureza  não afasta o homem de Deus como o pecado, pois este consiste em não cumprir as leis divinas. E Jesus enumera uma série de instintos internos, fontes de pecado que dão origem aos mesmos e que se realizados tornam o homem profano e vil perante Deus. Temos traduzido da melhor maneira possível, tendo em conta diversos textos, cuja origem é o grego e do qual pretendem ser traduzidas. São, pois, estas tendências más as seguintes: fornicações, roubos, homicídios, adultérios, cobiça (avareza), degradação (maldade, perversidade), fraude (engano), lascívia (desenfreamento), inveja (olho mau), blasfêmia, orgulho (arrogância), insensatez (estupidez). Tudo isso é que torna um homem contaminado, profano com respeito a Deus, que é sagrado por excelência.