Roteiro Homilético 3: Vida Pastoral
Coitado, só tem dinheiro!
I. Introdução geral
As leituras do 26º domingo comum
dificilmente deixarão insensível o coração do verdadeiro cristão. Trazem uma
contundente crítica à ganância, que, esta sim, torna insensíveis as pessoas. As
leituras de hoje trazem forte chamamento à conversão à solidariedade e à
justiça social para a transformação de uma realidade injusta e iníqua, segundo
a vontade de Deus. Essa necessidade de conversão não é apenas para os ricos,
mas também para os pobres que têm coração e mentalidade de ricos e para todos
os que não abrem os olhos para a realidade social injusta.
II. Comentário dos textos
bíblicos
I leitura: Am 6,1a.4-7
Mais uma vez (como no domingo
passado) Amós, mestre da ironia profética (veja as “vacas de Basã”, Am 4,1),
critica a “sociedade de consumo” de Samaria e de Jerusalém (Sião). Os ricos,
especialmente os da corte real, aproveitam a vida sem se importar com a “casa
de José”, ou seja, com a ruína do povo. A “casa de José” são as tribos de
Efraim e Manassés, filhos de José do Egito, que constituíram o reino do Norte
(Samaria). José, porém, distribuía alimentos ao povo, enquanto os donos de
Samaria tiravam o pão do povo. Por isso, essa elite tem de ir ao cativeiro,
para aprender o que é a justiça e o direito.
Na leitura da semana passada,
Amós revelava a ambiguidade dos ricos comerciantes da Samaria. Hoje,
censura-lhes a irresponsabilidade. Denuncia o luxo e a luxúria das classes
dominantes. Evoca ironicamente a gloriosa história antiga: os ricos, porque têm
uma cítara para tocar, acham que são cantores como Davi, enquanto o povo é
ameaçado pela catástrofe da injustiça social e da invasão assíria. Por isso,
esses ricaços sairão ao exílio na frente dos deportados…
Evangelho: Lc 16,19-31
A insensibilidade ao sofrimento
do pobre é também o tema da leitura evangélica deste domingo, a parábola do
ricaço e do pobre Lázaro, Lc 16,19-31. Nesta parábola, própria de Lucas, o
narrador acentua o perigo da riqueza. Mostra a insensibilidade de quem vendeu
sua alma em troca de riqueza – de quem é tão pobre, que só possui dinheiro!
A descrição do pobre e de sua
contrapartida, o ricaço, é extremamente viva. As sobras da mesa do rico não vão
para o pobre, mas para o cachorro. Parece que é hoje. Significativo é que
Lázaro tem nome, e seu nome quer dizer: Deus ajuda. O rico não tem nome, é
ignominioso. Quando então sobrevém a morte, igual para ambos, o quadro se
inverte. Lázaro vai para “o seio de Abraão” (é acolhido por Abraão no lugar de
honra do banquete, podendo reclinar-se sobre seu lado). O rico, entretanto, vai
para o xeol, a região dos mortos, onde passa por tormentos. Há entre os dois um
abismo intransponível, de modo que Lázaro não poderia nem dar ao ricaço um
pouco de água na ponta do dedo para aliviar-lhe o calor infernal. Na realidade,
esse abismo já existia antes da morte – o abismo entre ricos e pobres –, mas
com a morte tornou-se intransponível, definitivo. Então, o rico pede que Lázaro
possa avisar seus irmãos, que vivem do mesmo jeito que ele viveu. Mas Abraão
responde: “Eles têm Moisés e os profetas. Nem mesmo se alguém ressuscitasse dos
mortos, não acreditariam nele”: alusão a Cristo.
Dureza, isolamento,
incredulidade: eis as consequências do viver para o dinheiro. Podemos verificar
esse diagnóstico ao redor de nós, cada dia, e, provavelmente, também em nós
mesmos. A pessoa só tem um coração; se o coração se afeiçoa ao dinheiro,
fecha-se ao irmão.
Os ricos são infelizes porque se
rodeiam de bens como de uma fortaleza. É a impressão que suscitam hoje os
condomínios fechados. São “incomunicáveis”. As pessoas vivem defendendo-se a si
e a suas riquezas. Os pobres não têm nada a perder. Por isso, “as mãos mais
pobres são as que mais se abrem para tudo dar”.
Em nosso mundo de competição, a
riqueza transforma as pessoas em concorrentes. A riqueza é vista não como
“gerência” daquilo que deve servir para todos, mas como conquista e expressão
de status. Tal atitude marca a riqueza financeira (capitalização sem
distribuição), a riqueza cultural (saber não para servir, mas para sobrepujar)
e a riqueza afetiva (possessividade, sem verdadeira comunhão). Considera-se a
riqueza recebida como posse em vez de oikonomía (“economia”, palavra de origem
grega cujo significado primitivo seria “gerência da casa”). Não se imagina o
tamanho desse mal numa sociedade que proclamou o lucro e a competição como seus
dinamismos fundamentais. Até a afetividade se transforma em posse. As pessoas
não se sentem satisfeitas enquanto não possuem o objeto de seu desejo e, quando
o possuem, não sabem o que fazer com ele, passando a desejar outro… Não sabem
entrar em comunhão. Assim, a parábola de hoje é um comentário do “ai de vós,
ricos” (Lc 6,24).
II leitura: 1Tm 6,11-16
A 2ª leitura de hoje não
participa da temática principal da 1ª leitura e do Evangelho, mas completa-a,
no sentido de apresentar o contrário da dureza e avareza.
Imediatamente antes do trecho de
hoje, a primeira carta a Timóteo fala da avareza, que chega a abalar a fé
(6,10). Também os ministros da Igreja devem pôr-se em guarda contra ela.
Depois, positivamente, exorta Timóteo a cultivar as boas virtudes (6,11-12), a
ser fiel à profissão da fé (6,12.13), confiada a ele por Cristo, até sua volta
(6,14.15-16). A Igreja está no tempo do crescimento; deve conservar o que lhe é
confiado.
O testemunho de Cristo neste
mundo não é nada pacífico. É uma luta: o bom combate. Importa travar esta luta
– como o fez Paulo – até o fim, para que vivamos para sempre com aquele que
possui o fim da História. (Poder-se-iam acrescentar à leitura os versículos
seguintes, 1Tm 6,17-19, que são uma lição do que o cristão deve fazer com seus
bens.)
III. Pistas para reflexão
A riqueza que endurece: Ouvimos
as censuras de Amós contra os ricos da Samaria, endurecidos no seu luxo e
insensíveis ao estado lamentável em que se encontra o povo. Jesus, no
Evangelho, descreve esse tipo de comportamento na inesquecível pintura do
ricaço e seus irmãos, que vivem banqueteando-se, enquanto desprezam o pobre
Lázaro, mendigo sentado à porta. Quando morre e vai para o xeol, o rico vê, de
longe, Lázaro no céu, com o pai Abraão e todos os justos. Pede a Lázaro que venha
com uma gota d’água aliviar sua sede. Mas é impossível. O rico não pode fazer
mais nada, nem sequer consegue que Deus mande Lázaro avisar seus irmãos a
respeito de seu erro. Pois, diz Deus, nem mandando alguém dentre os mortos eles
não acreditarão. Imagine, se mesmo a mensagem de Jesus ressuscitado não
encontra ouvido!
E nós? Nós continuamos como o
rico e seus irmãos. Os pobres morrem às nossas portas, onde despejamos montes
de comida inutilizada… (Alguma prefeitura poderia talvez organizar a distribuição
das sobras dos restaurantes para os pobres.) Será que devemos criar nova
estrutura na sociedade, de modo que já não haja necessidade de mendigar nem
supérfluos a despejar? Isso certamente aliviaria, ao mesmo tempo, o problema
social e o problema ecológico, pois o meio ambiente não precisaria mais acolher
os nossos supérfluos. Mas, ao contrário, cada dia produzimos mais lixo e mais
mendigos.
O exemplo do rico confirma a
mensagem de domingo passado: não é possível servir a Deus e ao dinheiro. Quem
opta pelo dinheiro afasta-se de Deus, de seu plano e de seus filhos. Talvez
decisivamente.
Em teoria, aceitamos essa lição.
Mas ficamos por demais no nível pessoal e interior. Procuramos ter a alma limpa
do apego ao dinheiro e, se nem sempre o conseguimos, consideramos isso uma
fraqueza que Deus há de perdoar. Mas não fazemos a opção por Deus e pelos
pobres em nível estrutural, ou seja, na organização de nossa sociedade, de
nosso sistema comercial etc. Temos até raiva de quem quer mudar a ordem de
nossa sociedade. Prendemo-nos ao sistema que produz os milhões de lázaros às
nossas portas. Pior para nós, que não teremos realizado a justiça, enquanto
eles estarão na paz de Deus.
A “lição do pobre Lázaro” só
produzirá seu efeito em nós, “cristãos de bem”, se colocarmos a mão na massa
para mudar as estruturas econômicas, políticas e sociais de nossa sociedade.
Porém, que adiantariam novas estruturas se também não se renovassem os
corações? Quem conhece a história sabe que nenhuma estrutura social ou
econômica é definitiva, porque é fruto do trabalho humano, sempre provisório.
As estruturas mais justas não dispensam a sensibilidade para com aquele que
sofre, e é assumindo nossa responsabilidade diante do sofrimento de cada um, na
dedicação ao amor fraterno, que cuidaremos também de tornar mais fraternas as
próprias estruturas da sociedade.
Pe. Johan Konings, sj
Nascido na Bélgica, reside há
muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e
licenciado em Filosofia e Filologia Bíblica pela Universidade Católica de
Lovaina, na Bélgica. Atualmente é professor de Exegese Bíblica na Faje, em Belo
Horizonte. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da
liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e
formação dos fiéis – anos A - B - C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor
e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje. E-mail:
konings@faculdadejesuita.edu.br