Roteiro Homilético 3: Vida Pastoral
Por Pe. Johan Konings, sj
A soberania de Deus e nossa
fidelidade
I. Introdução geral
O tema da liturgia de hoje é fé e
fidelidade. O termo bíblico – emuná em hebraico, pistis em grego, fides em
latim – tem esses dois sentidos. Ora, a base de nossa fidelidade está na firmeza
inabalável e soberana de Deus. Se dizemos que nossa fé nos salva, isso não é
por causa da nossa qualidade, mas porque nossa fé nos une a Deus, que nos
salva. Fé é adesão firme a Deus, que é fiel. É a total entrega ao seu desígnio,
que muitas vezes supera nossa compreensão imediata, mas, em última instância,
confirma-nos na salvação. No Antigo Testamento, por exemplo, na 1ª leitura de
hoje, a fé é a adesão em autenticidade e lealdade a Deus; no Novo Testamento,
trata-se da adesão a Jesus Cristo, que nos une a Deus.
II. Comentário dos textos
bíblicos
II leitura: Hab 1,2-3; 2,2-4
Habacuc 1,2-2,4 é um diálogo
entre Deus e o profeta. Diante da desordem que reina em Judá, nos últimos anos
antes do exílio, Habacuc grita a Deus com impaciência, quase com desespero.
Deus, porém, anuncia que tratará o mal da infidelidade com um remédio mais
tremendo ainda: os babilônios. Quando Habacuc reclama contra essa solução – na
leitura deste domingo –, Deus responde: “Eu sei o que faço; não preciso prestar
contas; mas os justos se salvarão por sua fidelidade” (2,2-4). O profeta se
queixa, porque a impiedade está vencendo, porque o direito e o próprio justo
são pisados ao pé. Deus, porém, não precisa prestar contas ao ser humano. Este
é que lhe deve obediência, também nas horas difíceis: é a “fé/fidelidade” que
faz viver o justo (2,4).
Evangelho: Lc 17,5-10
O Evangelho começa com a prece
dos apóstolos: “Senhor, aumenta nossa fé!” Às vezes, precisa-se de muita fé
para acolher a palavra de Jesus, pois o Evangelho não é tão evidentemente
gratificante. Daí os discípulos dizerem: “Dá-nos mais fé!”
A resposta de Jesus é uma
admoestação para que tenham fé que transporta montanhas! Jesus fala aqui no
estilo hiperbólico, exagerado, dos orientais, mas não deixa de ser verdade que
quem se entrega em confiança a Deus em Jesus Cristo faz coisas que outros não
fazem e que o próprio crente não se julga capaz de fazer.
Somos como peões de fazenda, que,
depois de terem executado seu longo e cansativo serviço, não podem reclamar,
pois apenas cumpriram seu dever (cf. 1Cor 9,16). Assim como, em Habacuc, Deus
não presta contas ao profeta, o “dono” na parábola do Evangelho não precisa
prestar contas a seus servos. Depois da longa jornada dos servos no campo, ele
pede que lhe preparem a comida e a sirvam, sem reclamar. Fizeram somente seu
dever. É claro que Jesus não está justificando esse modo de agir do dono;
apenas usa uma cena cotidiana de seu tempo para expressar que Deus não precisa
prestar contas: quando o servimos, fazemos apenas o que devemos fazer.
Nossa mentalidade atual não
aceita isso facilmente. Em nossa sociedade, a mínima prestação de serviço exige
gratificação específica. Ainda que, muitas vezes, a gratificação não valha o
serviço, essa mentalidade exclui todo o espírito do “simples serviço”. Até as
prefeituras e governos estaduais fazem propaganda com as obras que nada mais
são que a execução de seu dever! Ora, no Reino de Deus, o que conta é o
espírito de participação. Faz-se o que o Reino exige, sem cobrar nada extra. A
recompensa existe no participar, como Paulo diz a respeito de anunciar o
Evangelho gratuitamente (1Cor 9,16). Ao interpretar a parábola, devemos pôr
entre parênteses os traços paternalistas da cena que Jesus evoca. O que ele
quer mostrar é que participamos no projeto de Deus não em função de uma
compensação extra, mas porque é a obra de Deus. O próprio Deus é nossa
recompensa, e a realização de seu amor supera qualquer recompensa extra que
poderíamos imaginar.
II leitura: 2Tm 1,6-8.13-14
A 2ª leitura é tomada do início
da segunda carta a Timóteo. Esta carta impressiona-nos por seu estilo vivo –
uma fotografia em alta definição do Apóstolo no fim de seus dias. É seu
testamento espiritual. No trecho de hoje, Paulo exorta seu amigo Timóteo a
manter a plena fidelidade ao Senhor. Pois também o ministro da fé deve
firmar-se na fidelidade, para poder confirmar os seus irmãos na fé.
Em Romanos 1,16, Paulo escreveu
que não se envergonhava por causa do Evangelho. A segunda carta a Timóteo
repete a mesma afirmação, para exortar os pastores que o sucedem a se lembrarem
de estar servindo ao Cristo aniquilado. Nas cidades do “mundo civilizado” de
então, o cristianismo era ridicularizado e perseguido. Por isso, Paulo exorta
seu discípulo a não se envergonhar e a guardar a doutrina sadia que dele
recebeu (contra as fantasias gnósticas e outras que se introduziram no
cristianismo primitivo). Exorta-o a guardar o “bom depósito”, ou seja, o bem
depositado em Timóteo, a ele confiado (1,14). Esse “bom depósito” é a plena
verdade do Evangelho. Repleto dela, o discípulo poderá distribuí-la aos outros,
pois o cristão é responsável não só por sua própria fé, mas também pela fé e
fidelidade do seu irmão. Ora, nas circunstâncias daquele tempo e de todos os
tempos, isso só é possível com a força do Espírito Santo.
Recebemos hoje, portanto, uma
mensagem para valorizar a fé, até mesmo como base da oração. Mas nossa fé não é
uma espécie de fundo de garantia para que Deus nos atenda. Assim como ele não
precisa prestar contas, também não é forçado por nossa fé. Nossa fé é
necessária para nós mesmos, para ficarmos firmes na adesão a Deus em Jesus
Cristo. Deus mesmo, porém, é soberano e soberanamente nos dá mais do que
ousamos pedir, como diz a oração deste domingo.
III. Pistas para reflexão
Somos simples servos: Quem não
gosta de um elogio? Não estão nossas igrejas tradicionais cheias de inscrições
elogiando os generosos doadores dos bancos e dos vitrais? Ora, o Evangelho de
hoje nos propõe uma atitude que parece inaceitável a uma pessoa esclarecida: o
empregado não deve reclamar quando, depois de todo o serviço no campo, em vez
de ganhar elogio, ele ainda deve servir a janta. É um empregado sem importância
especial; tem de fazer seu serviço, sem discutir…
Essa parábola não é para ensinar
a forma de tratar os empregados. Jesus nos quer ensinar a estar a serviço do
Reino, sem atribuirmos importância a nós mesmos. Ele mesmo dará o exemplo
disso, apresentando-se, na Última Ceia, como aquele que serve (Lc 22,27). Isso
não rima com a mentalidade calculista e materialista da nossa sociedade, que
procura compensação para tudo o que se faz – aliás, compensação superior ao
valor daquilo que se fez…
Ora, se levamos a sério a
parábola de Jesus, como ensinamos os empregados e os operários a reivindicar
sempre mais (porque, se não reivindicam, são explorados)? Certamente, Jesus não
quer condenar os movimentos de reivindicação, mas seu foco é outro. Ele quer
apontar a dedicação integral no servir. Interesse próprio, lucro,
reconhecimento, fama, poder… não são do nível do Reino, mas apenas da
sobrevivência na sociedade que está aí. A parábola não quer desvalorizar as
reivindicações da justiça social, mas insistir na gratuidade do serviço do
Reino.
Diante disso, convém fazer sério
exame de consciência acerca da retidão e da gratuidade de nossas intenções
conscientes e de nossas motivações inconscientes. Na Igreja, tradicional ou
progressista, quanta ambição de poder, quanto querer aparecer, quantas
“compensaçõezinhas”!
E mesmo com relação às estruturas
da sociedade, a parábola de Jesus, hoje, ensina-nos a não focalizar única e
exclusivamente as reivindicações. Estas são importantes, no seu devido tempo e
lugar, para garantir a justiça e conseguir as transformações necessárias. Mais
fundamental, porém, na perspectiva de Deus, é criar o espírito de serviço e
disponibilidade, que nunca poderá ser pago. Quem vive no espírito de comunhão
nunca achará que está fazendo demais para os outros.
“Somos simples servos.” Servindo
com simplicidade, não em razão de compensações egoístas, mas em virtude da
fidelidade e da objetividade, contribuímos com nossa participação no projeto de
Deus.
Pe. Johan Konings, sj
Nascido na Bélgica, reside há
muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É doutor em Teologia e
licenciado em Filosofia e Filologia Bíblica pela Universidade Católica de
Lovaina, na Bélgica. Atualmente é professor de Exegese Bíblica na Faje, em Belo
Horizonte. Entre outras obras, publicou: Descobrir a Bíblia a partir da
liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia dominical: mistério de Cristo e
formação dos fiéis – anos A - B - C; Ser cristão; Evangelho segundo João: amor
e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje. E-mail:
konings@faculdadejesuita.edu.br