27º Domingo do Tempo Comum, Ano C 5

Roteiro Homilético 5: Dom Total
A SOBERANIA DE DEUS E NOSSA FÉ



1ª leitura: (Hab 1,2-3; 2,2-4) O profeta pede explicação a Deus – Hab 1,2–2,4 é um diálogo entre Deus e o profeta. O profeta se queixa, porque a impiedade está vencendo. O direito e o próprio justo são pisados ao pé. Resposta: vem coisa pior ainda! Deus não precisa prestar contas para o homem. Este é que lhe deve obediência, também nas horas difíceis: “fé/fidelidade” que faz viver o justo (Hab 2,4). * 1,2-3 cf. Sl 13[12],2-3; 22[21],2-3; 55[54],10-12; Jr 9,2-3; Am 3,9-10 * 2,2-3 cf. Is 8,10; 30,8; Dn 8,26; 10,14; 2Pd 3,4-10; Hb 10,37 * 2,4 cf. Sl 37[36],3,-6; Rm 1,17; Gl 3,11; Hb 10,38.


2ª leitura: (2Tm 1,6-8.13-14) Não se envergonhar do Evangelho e guardar o bem depositado – Em Rm 1,16, Paulo escreveu que não se envergonhava por causa do Evangelho. 2Tm repete a mesma coisa como exortação aos pastores, que precisam lembrar-se de que estão servindo ao Cristo aniquilado. O “bom depósito” (o bem depositado neles) é a plena verdade do Evangelho. Repletos dela, poderão distribuí-la aos outros. O cristão é responsável não só por sua própria fé, como também pela do seu irmão. * 1,6-8 cf. 1Tm 4,14; Rm 8,15; 1,16 * 1,13-14 cf. 2Tm 4,3; 1Tm 6,20.


Evangelho: (Lc 17,5-10) Somos simples servos – A palavra de Jesus precisa às vezes de muita fé para ser acolhida. Daí os discípulos disserem: “Dá-nos mais fé”. Pois o evangelho não é tão evidentemente gratificante. Somos como peões de fazenda, que, depois de ter executado seu longo e cansativo serviço, não podem reclamar, pois apenas cumpriram seu dever (cf. 1Cor 9,16). Deus não precisa prestar contas a nós. * 17,5-6 cf. Mc 9,24; Mt 17,20; 21,21 * 17,8 cf. Lc 12,37; 22,27; Jo 13,1-16.


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O mote da liturgia de hoje é: fé-fidelidade (o termo bíblico tem os dois sentidos). Quando Habacuc (1ª leitura), diante da desordem em Judá, nos últimos anos antes do exílio, grita a Deus com impaciência, quase com desespero, Deus anuncia que ele tratará o mal por um remédio mais tremendo ainda: os babilônios. À objeção de Habacuc contra esta solução, Deus responde: “Eu sei o que faço; não preciso prestar contas; mas os justos se salvarão por sua fidelidade” (2,2-4). O evangelho começa com a prece dos Apóstolos: “Senhor aumenta-nos a fé”. O sentido de “fé” é um pouco diferente daquilo que Habacuc quer dizer. No A.T., trata-se da autenticidade e lealdade para com Deus, a fidelidade; no N.T., da adesão a Jesus Cristo (ambas as atitudes são indicadas pelo mesmo termo em grego, pistis, e em latim, fides). De fato, a adesão de fé implica também a lealdade e a fidelidade. A resposta de Jesus é uma admoestação para que tenham mais fé, fé que transporta montanhas! Jesus utiliza aqui o estilo hiperbólico dos orientais, mas não deixa de ser verdade que, quem se entrega em confiança a Deus em Jesus Cristo, faz coisas que outros não fazem e que ele mesmo não se julgava capaz de fazer.


Assim como, em Hab, Deus não presta contas ao profeta, vemos, no evangelho, Deus como um senhor que não precisa prestar contas a seus escravos. Depois do longo trabalho no campo, ele pode ainda pedir que eles preparem a comida e lha sirvam sem reclamar, pois fizeram somente seu dever. Claro que Jesus não está justificando este modo de agir; apenas descreve a realidade de seu tempo para expressar uma ideia religiosa: que Deus não precisa prestar contas: quando o servimos, fazemos apenas o que devemos fazer.


Mensagem chocante em nosso mundo, onde a mínima prestação de serviço exige uma gratificação específica. Ainda que, muitas vezes, a gratificação não valha o serviço, essa mentalidade exclui todo o espírito do serviço gratuito. Ora, no Reino de Deus somos participantes; nossa recompensa existe no participar, como Paulo diz a respeito do anunciar o evangelho gratuitamente (1Cor 9,16). Na realidade Jesus usa um exemplo tirado de uma sociedade paternalista. Ao interpretar, devemos excluir esses traços paternalistas. O que Jesus quer mostrar é que participamos no projeto de Deus não em função de uma compensação extra, mas porque é a obra de Deus. Pois o próprio Deus é nossa recompensa, a realização de seu amor supera qualquer recompensa que poderíamos imaginar.


Na 2ª leitura Paulo admoesta seu amigo Timóteo a manter plena fidelidade ao Senhor. Pois também o ministro da fé deve firmar-se na fidelidade, para poder firmar seus irmãos na fé. Não se envergonhar (o cristianismo era ridicularizado e perseguido nas cidades do mundo “civilizado” de então), observar a doutrina sadia recebida do Apóstolo (contra as fantasias gnósticas e outras que se introduziram no cristianismo primitivo), guardar o “bom depósito”, ou seja, o bem a ele confiado, o evangelho. Nas circunstâncias daquele tempo e de todos os tempos, isso só é possível com a força do Espírito Santo.


Recebemos hoje, portanto, uma mensagem para valorizar a fé, inclusive, como base da oração. Mas nossa fé não é uma espécie de fundo de garantia para que Deus nos atenda. Assim como ele não precisa prestar contas, também não é forçado por nossa fé. Nossa fé é necessária para nós mesmos, para ficarmos firmes na adesão a Deus em Jesus Cristo. Deus mesmo, porém, é soberano, e soberanamente nos dá mais do que ousamos pedir (oração do dia).


SOMOS SIMPLES SERVOS


Quem não gosta de um elogio? Não estão nossas igrejas tradicionais cheias de inscrições elogiando os generosos doadores dos bancos, dos vitrais ou da imagem de Sta. Filomena?


Ora, o evangelho nos propõe uma atitude que parece inaceitável a uma pessoa esclarecida, hoje em dia: o empregado não deve reclamar quando, depois de todo o serviço no campo, em vez de ganhar elogio, ele ainda deve servir a janta. Ele é um empregado sem importância; tem de fazer seu serviço, sem discutir.


Jesus nos quer ensinar a estar a serviço do Reino sem darmos importância a nós mesmos. Ele mesmo dará o exemplo disso, apresentando-se, na Última Ceia, como aquele que serve (Lc 22,27). Isto não rima com a mentalidade calculista e materialista da nossa sociedade, que procura compensação para tudo o que se faz – aliás, compensação superior ao valor daquilo que se fez...


Se levarmos a sério a parábola de Jesus, como então ensinamos aos empregados e operários reivindicarem sempre mais (porque, se não reivindicam, são explorados)? Certamente, Jesus não quer condenar os movimentos de reivindicação. A questão é outra. Ele quer apontar a dedicação integral no servir. Interesse próprio, lucro, reconhecimento, fama, poder... não são do nível do Reino, mas apenas da sobrevivência na sociedade que está aí. A parábola não serve para recusar as reivindicações de justiça social, mas para declarar impróprios os interesses pessoais no serviço do Reino.


Convém fazer um sério exame de consciência sobre a retidão e a gratuidade de nossas intenções conscientes e de nossas motivações inconscientes. Na Igreja, tradicional ou progressista, quanta ambição de poder, quanto querer aparecer, quantas compensaçõezinhas!


E mesmo com relação às estruturas da sociedade, a parábola de Jesus hoje nos ensina a não focalizarmos única e exclusivamente as reivindicações. Estas são importantes, no seu devido tempo e lugar, para garantir a justiça e conseguir as transformações necessárias. Mais fundamental, porém, na perspectiva de Deus, é criar o espírito de serviço e disponibilidade, que nunca poderá ser pago. Quem vive no espírito de comunhão nunca achará que está fazendo demais para os outros.


“Somos simples servos”. Antigamente se traduzia: “Somos servos inúteis”. Tal tradução era psicológica e sociologicamente nefasta, pois fomentava a acomodação, além de contraditória, pois servo inútil não serve... Servindo com simplicidade, não em função de compensações egoístas, mas em função da fidelidade e da objetividade, somos muito úteis para o projeto de Deus.


(O Roteiro Homilético é elaborado pelo Pe. Johan Konings SJ – Teólogo, doutor em exegese bíblica, Professor da FAJE. Autor do livro "Liturgia Dominical", Vozes, Petrópolis, 2003. Entre outras obras, coordenou a tradução da "Bíblia Ecumênica" – TEB e a tradução da "Bíblia Sagrada" – CNBB. Konings é Colunista do Dom Total. A produção do Roteiro Homilético é de responsabilidade direta do Pe. Jaldemir Vitório SJ, Reitor e Professor da FAJE.)