Roteiro Homilético 7: Exegese
(http://www.presbiteros.com.br/)
EPÍSTOLA (2Tim
4, 6-8. 16-18)
(Pe. Ignácio,
dos padres escolápios)
INTRODUÇÃO:
Paulo está preso pela segunda vez em Roma e considera que sua primeira defesa
foi suficiente para obter a libertação, mas confia em Deus que, sem dúvida,
dele obterá o melhor resultado para a propagação do evangelho que foi o destino
final de sua vida. Por isso ele oferece como ofereceu sua vida sabendo que o
termo da mesma está próximo e que se realizará como um sacrifício, como
derramamento de sangue, ou seja, uma libação sagrada.
LIBAÇÃO: Pois
eu já me ofereço em libação e o tempo apropriado de minha desintegração está
próximo(6). Ego enim iam delíbor et tempus resolutiónis meae instat. LIBAÇÃO
[spendomai<4689>=delibor] é o presente passivo do verbo spendö cujo
significado é ser oferecido como uma libação [cerimônia religiosa em que vinho
ou azeite eram derramados diante do altar]. Paulo sente que está para derramar
seu sangue pelo testemunho que deu de Cristo como uma libação diante do altar.
TEMPO APROPRIADO [kairos<2540>=tempus] kairos é uma medida de tempo: daí,
tempo definido, tempo de crise, tempo oportuno, que temos traduzido por tempo
apropriado, para distingui-lo do chronos que é tempo em geral. DESINTEGRAÇÃO
[analysis <359> =resolutio] o grego tem o significado de desatar,
dissolver, separar; e metaforicamente, de partir, como uma nave que levanta a
âncora e parte para alto mar, que muitos traduzem por despedida ou partida; ou
seja, morte. Paulo não tem esperanças e sabe que sua sina é o martírio.
O COMBATE: O
bom combate combati, a carreira acabei, a fé guardei (7). Bonum certámen
certávi, cursum consummávi, fidem servávi. BOM [kalos <2570>=bonus]
originariamente kalos é belo, formoso, mas também excelente, precioso, daí,
competente, e moralmente bom, nobre, honorável. Aqui o termo bom é o mais
apropriado. COMBATE [agön <73>=certamen] o significado de agön é assembleia,
ou o lugar da mesma, especialmente a arena ou o estádio. Daí esforço, luta,
batalha, e até ação judicial, julgamento. Escrevendo aos tessalonicenses, Paulo
diz que lhes falou o evangelho de Deus com grande oposição [agön] (1Ts 2,2) e
em 1Tm 6, 12, fala do bom combate da fé [kalön agöna] e realmente na vida de
Paulo encontramos mais do que traços dessa luta, segundo o que ele mesmo narra:
Recebi dos judeus cinco quarentenas de açoites menos um, três vezes fui
açoitado com varas, uma vez apedrejado, três vezes sofri naufrágio, uma noite e
um dia passei no abismo; em viagens muitas vezes, em perigos de rios, em
perigos de salteadores, em perigos da minha nação, em perigos dos gentios, em
perigos na cidade, em perigos no deserto, em perigos no mar, em perigos entre
os falsos irmãos; em trabalhos e fadigas, em vigílias muitas vezes, em fome e
sede, em jejum muitas vezes, em frio e nudez (2Cor 11,24-27). CARREIRA
[dromon<1408>=cursum] o dromos é o
curso ou percurso, especialmente usado como o percurso da vida, que é traduzido
por carreira, ou melhor por curso da vida nos três versículos em que sai no NT
(At 12, 35; At 20, 24 e esta de 2 Tm4, 27) este percurso está terminado. Paulo
está no fim de sua vida, mas tem uma coisa a seu favor: manteve a fé. GUARDEI
[tetërëka<5083>=servavi] tetërëka é o perfeito do verbo tëreö, guardar ou
tomar conta de uma coisa, conservar. Ele tem aqui o mesmo significado que
encontramos em Mt 19, 17, :se queres entrar na vida eterna guarda os
mandamentos. A fé se transforma num preceito, o primeiro, sem o qual, a entrada
no reino está fechada. E essa fé tinha entre os judeus uma expressão única:
Jesus Cristo, ou Jesus é o Messias. E como disse o Senhor a Pedro, é o meu Pai
que to revelou (Mt 16, 17).
A VITÓRIA:
Desde agora, a coroa da justiça está me guardada a qual me dará o Senhor
naquele dia, o justo juiz, não só a mim, mas também a todos os que amarem a sua
aparição (8). In réliquo repósita est mihi coróna iustítiae, quam reddet mihi
Dóminus in illa die iustus iudex; non solum autem mihi, sed et iis qui díligunt
advéntum eius. COROA [stefanos< 4735>=corona] é diferente de diadema que
era a coroa dos reis. O diadema era uma cinta branca que rodeava a cabeça,
distintivo da autoridade real e logo geralmente adornada com adornos diversos.
Os imperadores romanos se apresentavam
com a coroa triunfal ou radiante, inicialmente de folhas de lauro, mas depois
de ouro no passeio triunfal até o capitólio.
Stefanos era a guirlanda de galhos de oliveira ou de folhas de hera, que
recebiam os vencedores dos jogos olímpicos e rodeava sua cabeça. Esta é a coroa
da vitória após a luta no agön [arena] que Paulo diz está reservada para ele.
Paulo joga com a palavra agön que também pode designar um tribunal e diz que o
justo juiz lhe dará essa coroa de vencedor. NAQUELE DIA [en ekeinë të ëmera=in
illa die] é uma frase usada pelo próprio Jesus em Mt 7, 22: Muitos me dirão
naquele dia Senhor, Senhor, não profetizamos em teu nome? E em teu nome não
fizemos muitas maravilhas? Pois só aquele que faz a vontade de meu Pai entrará
no reino dos céus (idem 21). Também Lucas em 17, 31 se refere à destruição do templo e ruína de
Jerusalém. Em At 17, 31 lemos, no discurso de Paulo no Areópago que Deus tem
determinado um dia em que com justiça há de julgar o mundo por meio do homem que
destinou. E esta fé de Paulo aparece também e 2 Ts 1, 10, em que nesse dia vier para ser glorificado em
seus santos. Podemos falar de dois dias diferentes: 1º) o dia da destruição do
templo. 2º) o dia do juízo final. Provavelmente Paulo fala do dia da destruição
de Jerusalém, próximo, de forma tal que Jesus afirmou: Em verdade vos digo que
não passará esta geração sem que todas estas coisas aconteçam (Mt 24, 34). OS
QUE AMAM SEU ADVENTO [epifaneia<2015>=adventum] mais do que advento é a
manifestação ou demonstração visível de sua presença. Como temos comentado,
esta demonstração pode ser moral muito mais do que física; e deu-se
evidentemente no ano 70 com a destruição do templo, assim como em outras
circunstâncias posteriores. A última em 1989 com a queda do Muro de Berlim.
SOLIDÃO: Na
minha primeira defesa ninguém me assistiu, mas todos me desampararam. Que não
lhes seja imputado! (16). In prima mea defensióne nemo mihi ádfuit, sed omnes
me dereliquérunt: non illis imputétur. DEFESA [apologia <627>=defensio]
apologia é a defesa verbal no tribunal ou também um argumento ou afirmação bem
argumentada, própria para persuadir. Paulo quer dizer que não teve um advogado
nessa sua primeira presença diante do tribunal em que foi julgado. Paulo muda
de assunto e nestes versículos nos dá conta de sua situação no cárcere. Está
só. Unicamente Lucas está com ele (ver 11). E nesta situação só se queixa de um
tal Alexandro, de ofício ferreiro, a quem deixa o Senhor como vingador. Perdoa
os outros que o abandonaram. Mas teve a
seu lado o Senhor como diz em versículos seguintes.
ASSISTÊNCIA
DIVINA: Porém o Senhor assistiu-me e me fortaleceu, para que por meu meio o
anúncio fosse cumprido e ouvissem todas as nações e fosse livre da boca do leão (17). Dóminus
autem mihi ádstitit et confortávit me, ut per me praedicátio impleátur, et
áudiant omnes gentes; et liberátus sum de ore leónis. TODAS AS NAÇÕES [panta ta
ethnë<1484>=omnes gentes] ethnos significa multidão, companhia, em
especial se são gente de uma mesma raça ou gênero; por isso, se emprega para
designar uma tribo ou nação. Neste caso traduz o ha goyim <1471>hebraico,
como em Ez 23, 3º: Estas coisas se te farão, porque te prostituíste após os
gentios [aharei goyim] e te contaminaste com os seus ídolos. Paulo emprega ta
ethnë para os cristãos não judeus. Aqui, são as nações ou raças para
distingui-las da nação judaica ou eretz
Israel. BOCA DO LEÃO: No AT
encontramos a frase em Sl 22, 21: Salva-me da boca do leão, sim, ouviste-me,
das pontas dos bois selvagens. E em Amós 3, 12: Assim diz o Senhor: como o
pastor livra da boca do leão as duas pernas ou um pedaço da orelha, assim serão
livrados os filhos de Israel que moram em Samaria. Com esta frase Paulo espera
ser livre da morte, como foi o seu caso na primeira vez que esteve preso em Roma, ou talvez, visto
que na primeira audiência ele soube apresentar a sua apologia ou defesa (vers
16) de modo tal, que pareceu convincente e não foi condenado de imediato.
DESEJO FINAL:
Livrar-me-á o Senhor de toda obra má e guardará para seu reino celestial. Ao
qual a glória pelos séculos dos séculos. Amém. (18). Liberávit me Dóminus ab
omni ópere malo et salvum fáciet in regnum suum caeléste, cui glória in saécula
saeculórum. Amen. Cremos que Paulo insiste em que sua morte [obra má] por parte
de seus inimigos não está próxima e,
portanto estará vivo para a vinda do Reino que ele acredita estar próxima, como
parousia. Uma outra interpretação é que, tendo em vista a sua morte Paulo pensa
que estará cedo com Cristo no céu. O final é uma doxologia frequente em
Paulo (Ef 3, 21; Fp 4, 20 e Tm 1, 17),
que termina com o Amém em todas essas passagens como os judeus terminavam suas
súplicas nas sinagogas. De donde podemos tirar como consequência lógica que
Jesus é para os cristãos o que era jahveh para os judeus.
Evangelho (Lc
18, 9-14)
O FARISEU E O
PUBLICANO
(Pe Ignacio,
dos padres escolápios)
INTRODUÇÃO:
Esta é uma parábola própria de Lucas. As circunstâncias, com o templo de fundo,
e a oração como ambiente, são as mais sagradas que podemos encontrar dentro da
religiosidade da época, para descrever os momentos mais sublimes das relações
entre Deus e o homem. A parábola emite, pois, um juízo profundo de valor sobre
a intimidade das pessoas e a ação divina, que exalta, ou rejeita, o conceito
que de si mesmas abrigam. Mas também é uma parábola de contrastes entre dois
homens, que significam o máximo e o mínimo em religiosidade. E finalmente, é
uma lição suprema sobre o orgulho e seu oposto, a humildade. A parábola é
dirigida aos que, seguindo a lei, desprezavam os outros homens que consideravam
ladrões, perversos e adúlteros. Esses homens, honestos, erigidos em justos,
auto-suficientes e seguros de si mesmos, eram os fariseus, embora Jesus não
usasse este termo para descrevê-los no início da parábola, próprio do
evangelista. A continuação, no exemplo que é sempre uma parábola, usa como
modelo dos homens honestos um fariseu, e, como espelho dos outros homens, um
publicano. São os extremos, vistos desde a perspectiva tradicional do momento.
No juízo que o evangelista emite sobre os fariseus, o mais negativo não é que
se gabassem por serem corretos e de conduta imaculada [dikaios], mas o desprezo
com que olhavam os demais homens. Nisso podemos afirmar que sua conduta não era
tão louvável como eles pensavam. A pobreza, ou melhor, a mendicância de quem
pede perdão e nada exige de Deus é a que ganha o favor divino e obtém, além do
pedido, a graça da amizade com Deus. As obras humanas, boas ou más, não são
razão suficiente para obter por si mesmas a justificação [ dikaiöisis
<1347>] que é um presente [ dörema<1434] ao qual o homem não tem
direito algum, mas que não é negado a quem tem retas intenções [bemaventurados
os puros de coração, porque verão a Deus, Mt 5,7].
CONTRA OS
ENVAIDECIDOS: Disse, pois, também contra alguns dos que a si mesmos,
persuadidos como sendo honestos, e que desprezam os demais esta parábola (9).
Dixit autem et ad quosdam qui in se confidebant tamquam iusti et aspernabantur
ceteros parabolam istam. Temos respeitado os tempos dos dois verbos – acreditar
[pepoithotas] e ser [eisin]. A tradução literal de pepoithotas é persuadidos,
como um particípio passado, e de eisin é são, em presente. Querendo conservar o
grego original temos traduzido por: persuadidos como sendo [que são no original]
honestos. A ideia é de que existiam sujeitos que acreditavam na sua honestidade
[é a justiça grega] e desprezavam a moral dos outros como sendo condenável. A
justiça é o que hoje chamamos de probidade [rightness em inglês]. Daí, o homem
justo era aquele que cumpria exatamente a LEI, tanto a escrita [Torá] como a
transmitida oralmente [Mishná], como é apelidado José, esposo de Nossa Senhora
(Mt 1, 19). A ênfase está, não tanto em sua vanglória como homens íntegros, mas
no desprezo com que consideravam os outros seres humanos. A lógica nos invita a
descobrir a causa desse desprezo, que era a falta de cumprimento da lei, como
vemos no versículo 11. Na realidade, desprezavam o ham haaretz, o povo simples,
que não estudava nem entendia as leis. Como sempre, Jesus faz uso do exemplo,
da parábola, para que aquele que quiser compreender, entenda.
O CONTRASTE:
Dois homens subiram ao templo para orar, um deles fariseu e o outro publicano
(10). Duo homines ascenderunt
in templum ut orarent unus Pharisaeus et alter publicanus. O TEMPLO: Era
o lugar do sacrifício, mas também da oração para todos os povos (Is 56,
7), que Jesus cita ao expulsar os
vendilhões do templo. Era a casa da comunicação com Deus, onde Ele morava com
seu povo. Como vemos na conduta de
Moisés, a Tenda [chamada da Reunião] ou Tabernáculo, era o lugar em que Moisés
entrava para se comunicar com Javé (Êx 33, 7-11). Lugar em que Ana orava (1 Sm
1, 10) e no qual Salomão, na frente do altar (1 Rs 8, 22), orou ao ser
declarado rei. No NT, a hora nona era a hora da oração no templo. Era
precisamente a hora do sacrifício vespertino, ou seja, três da tarde, como
vemos em At 3,1. Paulo dirá de si mesmo, que entrou no templo para orar e caiu
em êxtase (At 22, 17). Os rabinos declaravam que a oração da assembleia, embora
existissem pecadores entre eles, nunca ficaria sem ser ouvida por Deus. De modo
que, quem não reza com e em comunidade, é um mal vizinho. Por isso, a sinagoga
era chamada casa de oração. Do mesmo modo dirão os sábios: quem reza na casa do
Senhor é como se oferecesse uma oferta
pura. Pensavam, pois, que esse era o melhor lugar para que suas preces fossem
ouvidas. De fato as orações das sinagogas sempre tinham o plural como agente
das mesmas, exatamente como o Pai-Nosso, ensinado por Jesus. Segundo Jesus,
fariseus e escribas hipócritas adoravam rezar de pé nas sinagogas. Parece que
existiam espaços determinados nas sinagogas para rezar. Aliás, as sinagogas
foram especialmente lugares de oração segundo Maimônides, e deviam ser
construídas sempre que houvessem dez homens para se reunirem. O fato de ficar
de pé era costume entre os judeus e por isso também o publicano reza do mesmo
modo; costume que eles atribuíam a Abraão que se levantou de madrugada (Gn 19,
27) e a Davi (2 Sm 7, 18). Os fariseus acostumavam rezar nas esquinas das ruas
porque assim eram mais visíveis suas orações. Também nas sinagogas os
assistentes se levantavam para orar (Mt 6, 5). É lógico que essa ostentação,
levava-os a ocupar os primeiros lugares nas sinagogas e nos banquetes (Mt 23,
6). Por isso estava nosso protagonista na frente no templo, ao contrário do
publicano, que ocupava um lugar distante (13). Não sabemos o lugar específico
de oração dentro do templo. Provavelmente seria o átrio dos israelitas, onde podiam entrar os homens
adultos, na hora do sacrifício, tanto matutino como vespertino, uma vez
ultrapassada a porta de Nicanor, separado do átrio dos sacerdotes por um muro
de pouca altura que deixava ver os sacrifícios. A estes acompanhavam orações,
como vemos por Atos 3,1. OS FARISEUS: A palavra original era parishim, que
significa separados, no sentido de escolhidos, ou melhor, os que não querem se
misturar com o povo [o hám-haaretz comum], para não se contaminarem com as
impurezas destes últimos. No tempo de Jesus, seu número era de 20 mil, pequeno,
ao que parece, mas enormemente
influentes por sua vida, aparentemente santa. Jesus denunciou a hipocrisia de
muitos deles que, tinham como fim de seus jejuns e orações, serem vistos pelos
homens, mas que no seu interior eram sepulcros de corrupção e perversidade que
Jesus chamava com razão sepulcros caiados (Mt 32, 27) porque a tinta branca
cobria a negrura interior dos mesmos. Sem dúvida, que eles estavam na mira no
início da parábola: alguns que confiavam em si mesmos como corretos
[cumpridores da Lei] e desprezavam o resto, ou os outros, como traduz a
vulgata. Mas não eram só os fariseus os atingidos, de início, por esta
parábola. Sem dúvida que aqui existe uma intencionalidade mais ampla do que a
palavra fariseu determina. Porém um fariseu típico era o exemplo mais apropriado daqueles que confiavam em
suas obras; e o publicano, do pecador que tinha transgredido todas as
principais leis mosaicas. Os fariseus eram uma das três categorias religiosas
do judaísmo pós-exílio, formados em círculos não sacerdotais, de leigos
dedicados à interpretação da Torah. Mas, como grupo organizado, surgiram no
tempo dos Macabeus, pouco antes de João Hircano (134-104 aC ). Sua moral estava
baseada na estrita interpretação, tanto da lei escrita como da que provinha da
tradição (Mc 7, 7-9). A meta de todo judeu era conservar uma nação santa,
consagrada e dedicada ao Deus de Israel, cujos meios consistiam, segundo eles,
na educação e conhecimento da Torah. Seu credo era formado pela observância estrita
do sábado e dias festivos em honra do Senhor e o cumprimento exato das leis da
pureza ritual, no pago dos dízimos e nas dietas alimentares, na crença da
liberdade humana, sob o controle da providência divina, e sua fé na
ressurreição, nos anjos e no Messias. Nisto se diferenciavam dos saduceus (At
23, 8), Os fariseus formavam um grupo religioso, que se distinguia
particularmente por sua estrita observância das prescrições religiosas e por
sua interpretação formalista da Lei, em boca de Flávio Josefo. Podemos dizer
que os fatos de que se gabava o nosso fariseu eram reais. O PUBLICANO:
Publicanos eram, na antiga Roma, as pessoas encarregadas de cobrar os impostos,
normalmente de origem equestre, pois os senadores não podiam participar. Nos
tempos da república, as arrecadações eram realizavas por sociedades financeiras
[societas publicanorum] que pagavam o total do importe do imposto ao Estado
antes de proceder à arrecadação do mesmo. César modificou no ano 47 aC o sistema na Palestina,
reduzindo os impostos e declarando os anos sabáticos isentos de tributação. Nos
tempos de Jesus, havia dois tipos de taxas: impostos diretos sobre a renda e o
patrimônio, e impostos sobre mercadorias e alfândegas, estes últimos,
precisamente, eram os que eram leiloados para que fossem arrecadados pelos
architelones [chefes de publicanos], cujos agentes recebiam o nome de telones,
palavra que significa escritório ou banca de trabalho comercial. Estas bancas
estavam distribuídas nas portas da cidade e nos acessos das mesmas como pontes
e portões das muralhas das mesmas. Na Galileia dependiam de Herodes Antipas e,
nos territórios do sul, do governador romano. Por terem de repor o dinheiro
leiloado, tornava o sistema de arrecadação um dos mais abusivos e
inescrupulosos de todos os conhecidos. O publicano tinha muito de que se
arrepender pelos abusos e excessos cometidos no exercício de seu trabalho.
ORAÇÃO DO
FARISEU: O fariseu, posto de pé, orava para si: (o) Deus, te agradeço porque
não sou como o resto dos homens, ladrões, malvados, adúlteros, nem tampouco
como este, o publicano (11).Jejuo duas vezes na semana, pago o dízimo de tudo
quanto possuo (12). Pharisaeus stans haec apud se orabat Deus gratias ago tibi
quia non sum sicut ceteri hominum raptores iniusti adulteri vel ut etiam hic
publicanus ieiuno bis in sabbato decimas do omnium quae possideo. Posto de pé,
orava para si [de si para si], que outros traduzem como olhando a sua conduta.
Ele dá graças [eucharisto]. A razão é que não sou como os demais homens(11).
Aparentemente é uma oração que qualquer um de nós poderia subscrever como sua.
Dar graças a Deus é uma das melhores formas de orar. Agradecemos sempre as
coisas boas. (Por que também não o fazemos com os infortúnios e os pecados?) A
única dificuldade da oração do fariseu era a sua comparação com o pecador que é
realmente desprezado, [como este publicano] e também com o resto dos homens. A
parte negativa dos mesmos homens da qual o fariseu não comparte, é de serem
ladrões, injustos [pecadores], adúlteros. Realmente, o juízo dos homens,
formado pelo fariseu, em geral, não é tão incorreto. A maioria entraria numa
dessas três categorias certamente. A parte positiva da qual ele realmente se
gloria como atuação livre e meritória é que jejua duas vezes na semana [Sábado
segundo o grego e a Vulgata latina] e paga dízimo de tudo quanto possui. Pelo
que respeita ao sábado ou Shabat, ele tinha dois sentidos: o dia do sábado e a
semana. Sem dúvida que aqui este último sentido é o que prevalece. O JEJUM: Os
taaniyot [dias de jejum] eram sinais de arrependimento, luto ou petição de uma
assistência divina especial [caso da rainha Ester em 4, 15]. Como os árabes
durante o Ramadão, o jejum hebraico supunha total abstenção de comida e bebida.
Os jejuns dos dias da Expiação [Yom Kippur] (Lv 23, 27-32) e do dia 9 do mês de
Av, dia da destruição do primeiro e segundo templo de Jerusalém, eram totais,
de ocaso a ocaso [o dia se contava assim no tempo], mas os jejuns, em geral,
duravam apenas de sol a sol. Os que jejuavam costumavam sentar-se no chão, se
vestir de aniagem [o famoso saco] e cobrir a cabeça com cinzas (ver Mt 6, 16).
Os dias de jejum entre os fariseus eram segunda e quinta; quinta, por afirmar a
tradição, embora um tanto tardia, que foi o dia da semana em que Moisés desceu
do monte após os quarenta dias, e segunda por ser o dia de sua ascensão. Mas
parece mais provável que a escolha dos dias era pela sua separação apropriada
com respeito ao sábado e entre os dias da semana. O DÍZIMO: Era o Maasser, o
imposto de dez por cento de produtos agrícolas, destinado ao sustento dos
levitas (Dt 14, 22-23), de famílias necessitadas, etc. Era uma oferenda anual
que se pagava no dia das cabanas ou tabernáculos, uma vez terminada a colheita.
A entrega era em espécie, mas como era difícil levar ovelhas, grãos, etc,
vendiam-se estes no lugar de origem e logo eram comprados em Jerusalém para
entregarem o produto da compra no templo (Dt 14, 25-26). Como estrito
observante da Lei, o fariseu pagava o dízimo até das coisas mínimas como a
hortelã [menta], a erva-doce [anis] e o cominho, que Jesus declarava em Mt 23,
23. Como vemos, são ervas próprias de condimentos, usadas minimamente como
alimento. A estas minúcias chegava à meticulosidade com que os fariseus
observavam a Lei. Vejamos uma oração de R. Judá que afirmava que devia dar
graças por três razões principais: Bendito sejas Senhor, porque não me fizeste
um gentio. Bendito sejas Senhor, porque não me fizeste um ignorante e inculto.
Bendito sejas Senhor, porque não me fizeste uma mulher. Por sua parte a mulher
repetirá as duas primeiras e subsistirá a última por: bendito sejas Senhor
porque me fizeste como desejaste. Tudo isso prova que a oração do fariseu não
era uma invenção de Jesus.
ORAÇÃO DO
PUBLICANO: Também o publicano, de longe, de pé, não queria nem os olhos
levantar ao céu, mas golpeava no seu
peito, dizendo: Tem misericórdia de mim, o pecador (13). Et publicanus a
longe stans nolebat nec oculos ad caelum levare sed percutiebat pectus suum
dicens Deus propitius esto mihi peccatori. De longe, como correspondia a quem
se sente o mais humilde de todos os homens, como desprezado por Deus, como quem
tem cometido um grande crime e, portanto, nem olhar podia para o seu
antagonista, batia no peito. Este gesto, não se encontra no AT, mas Flávio
Josefo fala dele como sendo sinal de arrependimento. Talvez porque se
considerava que o coração era a fonte de maldade como declarará Jesus em Mt 15,
19. A
Igreja usou este gesto no confiteor antes da Missa como sinal do pecado
cometido e arrependimento: mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa. A oração do publicano é uma simples petição
de perdão, indicando que o necessita porque se confessa pecador, portanto
afastado de quem agora está se aproximando. O grego com o artigo [o pecador]
indica que ele, por seu ofício, se incluía entre os afastados de Deus, como um
gentio e idólatra.
O JUÍZO DE
JESUS: Digo-vos: Desceu este justificado para a sua casa, porque todo (aquele)
que se exalta a si mesmo será humilhado, mas o que se humilha a si mesmo será
exaltado(14). Dico vobis descendit hic iustificatus in domum suam ab illo quia
omnis qui se exaltat humiliabitur et qui se humiliat exaltabitur. A tradução
corrente é que este voltou para casa justificado e o outro não. Porém, não
parece ser esta a melhor tradução do grego, que reflete em sua estrutura um
comparativo hebraico. Vejamos essa tradução: Digo-vos que este [o publicano]
voltou para sua casa justificado em comparação com o outro [fariseu]. A vulgata
traduz fielmente: descendit hic justificatus in domum suam ab illo (14 a ). Geralmente nós temos
pensado que o fariseu foi reprovado não tanto por uma oração em que reconhecia
a bondade de Deus em sua vida, mas pela falta de humildade com respeito ao
próximo; e que o publicano era absolvido de seus pecados por reconhecer os
mesmos e tentar o perdão do único que podia apagar sua dívida, num ato de
profunda humildade. A justificação aqui vista sob o aspecto de um particípio
perfeito, dedikaiómenos, é uma passiva teológica em que a ação de Deus é
definitiva: Deus o perdoou, o admitiu como amigo em comparação [não oposição]
com o outro, que não fez a oração do agrado divino. MORAL DA HISTÓRIA: O que se
exalta será humilhado, mas o que se humilha será exaltado. Parece um tanto fora
de lugar esta frase como moral da história. O mais lógico seria: a melhor
oração, a que traz o favor divino, seria aquela em que o orante se apresenta
como indigente diante de Deus. Mas Lucas gosta de exaltar a pobreza e, com ela,
a humildade. Por isso, aqui repete o provérbio que tinha sido citado por Jesus,
ao ver a luta entre os convidados, pelos primeiros lugares na mesa do jantar
(14, 11). Já Ezequiel tinha escrito: saberão todas as árvores do campo que eu,
Javé, é que abaixo a árvore alta e elevo a árvore baixa (7, 24). Assim passamos
de um segmento particular, como é a oração, a uma norma geral, como é a escolha
e o proceder divinos na sua total amplitude.
PISTAS: 1) Na
anterior dominica vimos a constância na oração; hoje contemplamos como a
sinceridade e humildade conquistam o favor divino. Não basta qualquer oração; é
necessário que saia do fundo da indigência humana para provocar a ação divina.
O fariseu busca um Deus que aprove sua vida e nada pede. Nada necessita: é a
oração do auto-suficiente. Deus nada tem a fazer diante de semelhante atitude.
2) Devemos
modificar nossa maneira de julgar nossos semelhantes. Geralmente fixamos nossa
atenção nos seus defeitos, nos seus pecados, nos seus vícios. Por que não olhar
neles as coisas boas, as excelências, as virtudes? Sem dúvida que seremos mais
justos e teremos uma visão mais otimista do mundo.
3) No mal, no
pecado, achamos a miséria humana, a derrota, a impotência, quando não a
ignorância, nunca a grandeza. É a mesma miséria que encontramos na doença, no
sofrimento, na morte. Se esta última nos oferece uma palavra de compaixão e de
desculpa, por que não desculpamos e perdoamos a pessoa que comete esse mal,
que, por outra parte, tão absolutamente reprovamos?
4) O perdão é
o maior dom que podemos receber de Deus. A humildade, o reconhecimento de nossa
insignificância, é a mais excelente disposição para recebê-lo. E todos
necessitamos desse perdão.