Roteiro Homilético 7: Exegese
EPÍSTOLA (1
Cor 1, 1-3)
(Padre
Ignácio, dos padres escolápios)
SAUDAÇÃO:
Paulo, eleito apóstolo de Jesus Cristo por vontade de Deus e Sóstenes, o irmão
(1). Paulus vocatus apostolus
Christi Iesu per voluntatem Dei et Sosthenes frater. A epístola de hoje
forma parte da saudação particular de Paulo aos fieis de Corinto desde Éfeso
para corrigir abusos e firmar a doutrina da fé. A Eucaristia, a unidade da
Igreja, a ressurreição, a sabedoria da cruz e a castidade cristã são objeto de
sua preocupação. Sua autoridade é afirmada desde o princípio como apóstolo,
especialmente escolhido pelo Senhor para anunciar o evangelho aos gentios. Deus
mesmo o escolheu por boca dos profetas e Jesus o confirmou aparecendo a Paulo e
confortando-o como vemos em At 18, 9-10: Disse o Senhor em visão a Paulo: Não
temas e não te cales. Porque eu sou contigo e ninguém lançará mão de ti para te
fazer o mal, pois tenho muito povo nesta cidade. Era o início do ano 51. SÓSTENES: de origem grega e de significado
forte ou preservador da força, era o chefe da sinagoga de Corinto quando os
judeus acusaram Paulo frente ao procônsul Gálio que se desinteressou do caso e
então os judeus feriram Sóstenes diante do tribunal, provavelmente por ter
feito um papel péssimo como acusador. Parece que se converteu após esse incidente.
Conforme tradição posterior Sóstene era um dos 70, o que parece impróprio. De
todos os modos, é provável que Sóstenes fosse o amanuense de Paulo, que
redatava a epístola, e que Sóstenes a
escrevia no pergaminho ao ditado do apóstolo. IRMÃO [adelfos<80>=frater] em termos clássicos era o filho da mesma mãe
ou pai. Entre os judeus, o parentesco do irmão se estendia aos tios, primos
etc. e correspondia ao AH hebraico. Em termos bíblicos do NT era o título que
recebia o cristão, pois como disse Jesus um só é vosso Mestre, e vós todos sois
irmãos (Mt 23, 8). E a frase tem um sentido próprio, pois os rabinos [mestres]
eram chamados pais, como vemos no
versículo seguinte (9) no mesmo escrito. Era costume entre os discípulos de
Jesus esse apelativo como vemos em Jo 21, 23: Se tornou corrente entre os
irmãos o dito de que aquele discípulo não morreria. Sóstenes, pois, era além de
amanuense um cristão conhecido pelos de Corinto.
ENDEREÇO: À igreja do Deus a que está em Corinto, aos
consagrados em Cristo Jesus, escolhidos santos com todos os invocantes do nome
do Senhor nosso Jesus Cristo em todo lugar tanto deles como nosso (2).
Ecclesiae Dei quae est Corinthi sanctificatis in Christo Iesu vocatis sanctis
cum omnibus qui invocant nomen Domini nostri Iesu Christi in omni loco ipsorum
et nostro. Explicado no primeiro versículo o remetente, agora temos o círculo
dos que recebem a carta. É o conjunto dos fieis de Corinto, aos que Paulo chama
de A IGREJA DE DEUS é o primeiro dos atributos ou apostos com os
quais Paulo se dirige aos fieis de Corinto. Essa expressão, como sinagoga de
Deus [sinagogë tou Kyriou] aparece na tradução da Setenta em passagens como Nm
16, 3. Também em At 20, 28, o rebanho que Cristo comprou com seu sangue,
contrária à sinagoga de Satanás (Ap 3, 9). Era a Igreja que Paulo perseguiu na
Palestina (1 Cor 15, 9). Em termos profanos, IGREJA
[ekklësia<11577>=ecclesia] era uma reunião dos cidadãos de uma cidade
grega, para tratar de problemas comuns. Para os judeus, era o povo de Israel,
como uma assembleia religiosa dedicada a Jahveh. Entre os cristãos, era a
comunidade dos fieis que os unia a Cristo pela fé. EM CORINTO: Era uma das
grandes cidades do mundo antigo e a sua comunidade era próspera e famosa por
sua reputação como sedenta de prazeres com um templo dedicado a Afrodita no
qual habitavam mil Hierodulas, ou prostitutas sagradas. O termo Corintiathomai
era conhecido no mundo greco-romano como viver uma vida licenciosa. O museu de
Asclépio hoje nos mostra uma parede cheia de penes genitais aparentemente
ex-votos por cura de doenças venéreas. Por isso, Corinto é descrito como
intelectualmente alerta, materialmente próspera, mas moralmente corrupta. A
bebida era outra característica dos excessos dos corintianos. Um autor da época
dizia que se um corintiano aparecesse nas tabuas do teatro ele estaria bêbado
(Aelian). Era Corinto o centro de desportos [jogos do istmo dedicados a
Poseidon], do governo, de uma guarnição militar e do comércio [famoso era o
bronze corintiano, mistura de ouro, prata e cobre]. Em aposição temos também as
duas expressões: Consagrados em Cristo Jesus e escolhidos santos. CONSAGRADOS
[ëgiasmenoi<37> = sanctificati]. É o particípio passado do verbo agiazö
que inicialmente indica coisas ou pessoas separadas do âmbito profano para ser
dedicados à divindade. Como tal dedicações deviam ser purificadas e daí a
santidade como atributo devido aos mesmos. Por isso, em termos vernáculos o
agios [substantivo] é traduzido impropriamente por santo. O catecismo antigo, ao falar do cristão dizia que era
homem dedicado ao serviço de Cristo. Porém havia muitos problemas tanto morais, como de doutrina e de governo
da Igreja. ESCOLHIDOS [klëtoi<2822>=vocati] em grego são os chamados,
convivas, chamados a exercerem um ministério, escolhidos e designados para uma
missão. Mateus distingue entre klëtoi [chamados] e eklëtoi [escolhidos] (20,
16) quando Jesus afirma: muitos são chamados, mas poucos escolhidos.
SANTOS [agioi<40>=sancti] é a
tradução do Kadosh[<06918> =sanctus] como em Êx 19.6: Vós sereis para mim
um reino de sacerdotes, uma nação santa. Estas são as palavras que falarás aos
filhos de Israel. Ou seja, mais do que moralmente sem pecado, significa
especialmente dedicados ao serviço de Deus, como foi o antigo povo de Israel,
que unicamente adorava o verdadeiro Deus. Isso mesmo serão os cristãos
dedicados ao serviço de Jesus Cristo no NT, como diz Paulo neste versículo.
TANTO DELES COMO NOSSO: O pensamento de Paulo está em igualar gregos com
judeus; e como eles foram escolhidos em primeiro lugar, por isso Paulo os cita
desse modo. Como nosso Paulo se une espiritualmente aos gentios,
considerando-se um entre eles, pois fala aos de Corinto que na sua maioria eram
de origem grega.
UMA BÊNÇÃO:
Graça a vós e paz de parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo (3).
Gratia vobis et pax a Deo Patre nostro et Domino Iesu Christo. Paulo termina a
saudação da carta com uma doxologia que é ao mesmo tempo uma oração e um
desejo. GRAÇA [charis<5485>=gratia] sem correspondência no AT é usada com
o significado de favor, benevolência, que Nossa Senhora encontrou segundo as
palavras de Gabriel: Achaste graça diante de Deus (Lc 1, 30). Por isso, ela
exaltou esse Deus benfeitor, quando pronunciou: porque contemplou a
insignificância de sua escrava. É a benignidade com que Deus olha o necessitado
que a Ele recorre como mendigo. Paulo pede que Deus Pai e o Senhor Jesus olhem
para os de Corinto do mesmo modo que Maria foi contemplada por Deus como filha
do Pai, mãe do Filho e esposa do Espírito Santo. EIRËNË [<1515>=pax] é o
Shalom do AT com o significado de ausência de guerra entre duas nações, ou
harmonia e concórdia entre indivíduos; também corresponde ao hebraico shalom
leka, ou seja, uma bênção em que se desejam os bens messiânicos a uma pessoa,
ou simplesmente bens e felicidade, como é nosso caso.
EVANGELHO (Jo
1, 29-34)
O TESTEMUNHO
DO BATISTA.
(Pe. Ignácio,
dos padres escolápios)
INTRODUÇÃO: No
domingo anterior, vimos o testemunho do céu, a Teofania, sobre o homem que quis
ser batizado por João no rio Jordão. A palavra, vinda do alto, dava
legitimidade ao homem Jesus como Filho de Javé, embora esta expressão não
tivesse um significado tão radical como o que hoje lhe atribuímos, uma vez
conhecida a essência trinitária divina. Neste Domingo, que, embora tenha o
título de segundo domingo comum, é o primeiro, após as festividades natalinas,
a Igreja apresenta o melhor testemunho humano sobre Jesus de Nazaré: o de João,
o Batista. Ele é a testemunha oficial [profeta], reconhecido como tal pela
imensa maioria de seus contemporâneos. O povo assim o reconhecia e os
dirigentes não se atreviam a ir contra esta reputação, que incluía seu batismo
como sendo de divina disposição (Mt 21,25-27). Sua vida austera e incomum o
colocava entre os especiais como seres humanos. Para os judeus que não
acreditavam em super-herois, ele era a palavra de Jahweh. E como tal palavra
ele se apresenta, neste domingo, para ser testemunha do maior ato que se pode
lembrar com orgulho a humanidade: Deus se fez carne e habitou entre nós (Jo 1, 14).
Porque João veio como testemunha da luz (8). Sua palavra é uma prova
testemunhal indiscutível: As ações de Jesus, suas palavras, são dirigidas por
Deus e são as últimas e definitivas intervenções de Deus na história humana.
NO DIA
SEGUINTE: No dia seguinte, vê João a Jesus, vindo para ele, e diz: vede o
cordeiro de(o) Deus o que tira o pecado do mundo (29). Altera die videt
Iohannes Iesum venientem ad se et ait ecce agnus Dei qui tollit peccatum mundi.
EPAURION <1887> [epayrion = manhã seguinte, altera die latino] ou seja,
no dia seguinte ao narrado pelo evangelista nos parágrafos anteriores, que
corresponde à pergunta dos sacerdotes e levitas enviados de Jerusalém: Tu quem
és? Depois de negar qualquer autoridade como
Messias, Elias, ou o profeta, João afirma ser unicamente a voz no ermo para
pregar uma preparação para o Senhor. A fixação temporal pode ser unicamente um
termo de vínculo redacional muito mais do que temporal e histórico, haja vista
que essa mesma conjunção é usada outras
duas vezes nos versículos 35 e 41, do primeiro capítulo e mais uma vez no
primeiro versículo do segundo capítulo, completando um marco de dias em que
temos as primeiras manifestações de Jesus: a dada pelo Batista (v 29-34), a dos
primeiros discípulos (v 35-39), a de Filipe e Natanael (v 43-51) e, finalmente,
a manifestação em poder, feita em Caná (cap 2, v 1-11). Não podendo unir em
termos temporais essas manifestações, porque se pensava que o batismo de Jesus
se realizara perto de Jericó [distante dois ou três dias de Caná], e não em
Betabara, [a um dia de distância de Caná] daí que os exegetas tomaram a frase
no dia seguinte, que precede todas as manifestações, como um termo conjuntivo
redacional. Mas se o batismo e o encontro com os primeiros discípulos foi em
Betabara, perto de Gádara e Citópolis (ver mapa no comentário do domingo
anterior), a ilação temporal é possível e o nosso evangelista está narrando,
como historiador, fatos ocorridos com a alternância de dias sucessivos. Isso
indicaria uma testemunha ocular dos fatos e daria ao evangelho [o último a ser
escrito] uma autenticidade insuperável. VÊ JOÃO A JESUS: É o encontro realizado
após o batismo, e o jejum no ermo [sertão, diríamos no Brasil] com Jesus que de
novo se aproxima do Batista. JOÃO BATISTA: João: Do hebraico Johanan [Deus,
Jahweh, propício, ou Deus favoreceu]. Nas linguagens semitas o nome era a
essência das pessoas. Em outras línguas o nome identifica a pessoa e a separa
como própria, distinta dos outros homens. No nosso caso, o nome de João o
identifica com o filho nascido de Zacarias, o sacerdote da classe de Abias e
sua mulher Isabel. Por nascimento, João era sacerdote e filho legítimo de dois
pais da descendência de Aarão (Lc 1, 5). Ambos eram justos, isto é: cumpriam
rigorosamente a Torah. De sua adolescência e juventude nada sabemos. Unicamente
o encontramos com maioridade legal [maior de 30 anos] num lugar desabitado
[eremos em grego] ao outro lado do Jordão, mais particularmente em Betânia, ou
melhor, segundo Orígenes, Bethabara [casa do vau] e não casa do deserto [pois
este é arabá e não abará] que pode corresponder com os vaus de Abraão que
estavam no caminho de Gileade. (Ver o número 05679 de Sprong no dicionário em
que temos a tradução crossing place ou vau). Caso seja certo, o lugar estaria mais
perto da Galileia do que da Judeia; pois a cidade oriental cisjordânica é
Citópolis. Por isso, João batizava em Enom perto de Salim (Jo 3, 23). Enom
está, segundo nos afirmam os biblistas, perto de Citópolis. Coincidem assim as
duas narrações dos capítulos 1 e 3. Mais, estando o vau tão perto da Galileia,
entendemos como dentre os discípulos de João encontramos verdadeiros galileus
como André, Filipe e Natanael. Também podemos entender que Bethabara ou Enom
estava no caminho de Jerusalém para a Galileia e, passando Jesus por esse
caminho, João o apontou a seus discípulos como o cordeiro de Deus (Jo 1, 36).
Segundo Lucas, João veio por todos os arredores do Jordão proclamando um
batismo de metânoia (Lc 3, 3). Isto implica que também o lugar de Betabara estava
dentro do percorrido do Batista. Marcos 1, 4 fala de que apareceu João no
deserto [em te eremo] ou ermo, sem dizer que deserto era. Mateus afirma que era
o deserto da Judeia [em te eremo tes joudaios] (Mt 3, 1). Porém é difícil
pensar que fosse o deserto da Judeia, pois este não chegava até Jericó e estava
ao sul do mesmo, na desembocadura do Jordão e este era propriamente o Midbar
hebraico, com o significado de estéril, desolação. O Arabah, com artigo, era o
vale do Cedron, especialmente na sua parte oriental, mais perto do mar Morto.
Podemos afirmar que o eremos grego traduz um lugar inóspito. É uma contradição
que o Batista batizasse no deserto, junto ao Jordão precisamente numa região
que é fértil e bem habitada. Segundo os comentários da bíblia de Jerusalém, o
deserto da Judeia era a região montanhosa que se estendia entre a cadeia
central da Palestina e a depressão do Jordão e do mar Morto. Não havia água
suficiente para batizar. A esse deserto foi levado Jesus pelo Espírito e morava
entre feras (Mc 1, 12). É difícil que houvesse feras no deserto próprio da
Judeia, mas sim que existissem no lugar inabitado perto de Enom. Jesus foi
batizado, segundo Lucas, no Jordão e voltou do Jordão e foi conduzido pelo
Espírito Santo ao interior do deserto (4, 14). O deserto foi, sem dúvida,
citado pelos evangelistas para que se visse cumprida a profecia do segundo
Isaías, 40, 3, segundo a Setenta: Voz que clama no deserto. Mas o hebraico diz:
Uma voz clama: preparai no deserto o caminho do Senhor. De Mateus e Marcos não
podemos tirar uma conclusão geográfica certa. É João que nos deve conduzir a
uma conclusão certa. Não queremos dar a última palavra; porém, sim expressar
novos pontos de vista, especialmente pelo que diz respeito ao evangelho de
João, aparentemente contraditório com os sinóticos, mas que histórico e
geograficamente está melhor avaliado atualmente. Pode ser que exista uma via
média que compagine tanto a visão de João como as visões aparentemente
contraditórias dos sinóticos. O NOME: Na realidade deveria ser chamado João bar
Zacarias [João filho de Zacarias], mas todos o conhecemos por João, o Batista.
Porque foi em seu ofício de pregar o batismo de penitência que ele foi famoso,
especialmente porque batizou Jesus o Filho de Deus e deu testemunho de que ele
assistiu à Teofania, de modo a ser uma testemunha muito particular. Se os
apóstolos eram testemunhas da vida e da ressurreição de Jesus, o Batista se
tornou testemunha da presença divina na pessoa de Jesus, somente superada pela
Teofania dos três apóstolos no monte Tabor. Esse testemunho do Batista o torna
o maior nascido dentro do âmbito da Antiga Aliança (Lc 7, 28). Muitas vezes
pensamos que a resposta de Jesus aos fariseus que perguntavam com que
autoridade fazes estas coisas, perguntando por sua vez de onde era o batismo de
João, do céu ou da terra, era uma pergunta irônica para sair do passo. Mas, na
realidade era a melhor resposta: Caso fosse do céu, Jesus podia responder: pois
eu faço estas coisas com a autoridade que me deu João, pois ele deu testemunho
de mim (Jo 5, 36). Por isso João é importante: pelo testemunho que ele deu de
Jesus. Também nós somos importantes pelo testemunho de nossa fé: Quem crê de
coração obtém a justiça e quem confessa com a boca, a salvação (Rm 10, 10). O
CORDEIRO DE DEUS: Olhai o cordeiro do (sic) Deus. Olhai ou Vede que é traduzido
também por Eis. Isso implica uma presença física de Jesus e um comparecimento
de alguns discípulos de Jesus que assistiam a cena nesse momento. Cordeiro é a
tradução do Amnes. Em Isaías 53, 7 lemos: como um cordeiro foi conduzido ao
matadouro. A tradução dos Setenta do cordeiro é amnós, que na bíblia grega de
Bambas [Londres] é traduzido por arnion. A diferença entre arnion e amnes é que
arnion é um diminutivo de aren cordeiro. A primeira vez que um cordeiro sai
como animal de sacrifício é em Gn 22, 7. Isaac pergunta a seu pai Abraão onde
está o cordeiro para o sacrifício. O hebraico seh <07716> é traduzido ao
grego por probaton <4263> que significa gado, especialmente menor. Em hebraico
a Bíblia usa duas outras palavras significando cordeiro ou ovelha: Taleh ou
Tela e Kebés ou keseb. A primeira é encontrada em Samuel 7, 9 e Isaías 65, 25
[Is 40, 11] e a segunda é a palavra mais usada para animais de sacrifício como
vemos no livro dos Números nos capítulos 7, 28 e 29. Em Êx 22, 3 o cordeiro que
deve ser sacrificado é o probaton nos Setenta, e arnion na versão de Bambas.
Como resultado, podemos afirmar que arnion e amnes podem significar a mesma
coisa e que probaton é a tradução do hebraico seh. Isaías usa este último termo
para apontar o Messias como cordeiro levado ao matadouro que suporta o
sofrimento numa submissão silenciosa. No Apocalipse [5,8 e 13,8] temos que será
o arnion [cordeirinho] a quem os quatro animais [quatro anjos que presidem o mundo
físico] e os vinte quatro anciãos [representantes das 24 classes sacerdotais]
adoram, após ele receber o livro da vida. Do ponto de vista do quarto
evangelista, Jesus era o Cordeiro Pascal de menos de um ano sacrificado e morto
precisamente na hora [nona ou três das tarde] em que eles eram degolados (Mc
15, 34). João dirá que era meio dia, do dia da preparação da páscoa, em que
tudo que era fermento era destruído (19, 14) quando Pilatos o entregou para ser
crucificado. Por isso o nosso evangelista compara Jesus com o cordeiro pascal
do qual nenhum osso devia ser quebrado (Jo 19, 36). Daí que ele tira O PECADO
[em singular] do mundo. Qual era esse pecado? E a que mundo se referia? Sem
entrar em disquisições sobre se estas eram palavras originais ou interpretação
posterior da primitiva Igreja, podemos afirmar que o pecado era a inimizade
existente desde a origem, que tornou o homem inimigo de Deus e que necessitou
da morte de Cristo como sacrifício para obter a reconciliação (Rm 5, 10). Por
isso, dirá Paulo que se por meio de um homem entrou o pecado no mundo e pelo
pecado a morte, (Rm 5, 12) assim pela obediência de um só [como dirá Paulo até
a morte e morte de cruz (Fp 2, 8)] todos se tornarão justos (idem 19). Ou como
diz em 1Cor 5,7 os novos cristãos são sem fermento de malícia de pecado e
perversidade, pois estamos no tempo da Páscoa em que Cristo foi imolado.
Finalmente em 1Pd 1, 18-19 temos que fomos resgatados pelo precioso sangue de
Cristo como de um cordeiro sem defeito e sem mácula [tal como devia ser o
cordeiro pascal]. Disso tudo temos suficientes razões para afirmar que ao
chamar Jesus Cordeiro de Deus, o Batista
estava indicando o modo como o Pai entregava o Filho e a maneira como o Filho
expiava o pecado do mundo.
O TESTEMUNHO:
Este é de quem eu disse: após mim vem um homem que foi gerado [gegonen] antes
de mim porque era anterior [protos] a mim (30). Hic est de quo dixi post me
venit vir qui ante me factus est quia prior me erat. A frase tem sua
dificuldade. A tradução que temos apresentado é a mais fiel já que o verbo
ginomai grego significa vir a existir e, estando no tempo perfeito, significa
veio a existir, ou seja, foi gerado tratando-se de um homem. Porém esta
afirmação está em oposição com a história: Jesus nasceu depois de João. O protos
significa primeiro tanto na ordem do tempo como na ordem de excelência.
Teremos, pois, que encontrar um significado metafórico ou alegórico à expressão
do Batista: Ele é superior; e, portanto, sua existência é anterior à minha, de
mais valor, de modo que eu seja o servidor do mesmo. No versículo 15,
imediatamente após narrar a encarnação do Verbo, o evangelista traz o
testemunho do Batista, afirmando: este é aquele do qual eu disse que passou
diante de mim porque existia antes de mim (tradução da bíblia de Jerusalém). A
Vulgata traduz ante me factum est, quia prior me erat [foi feito {gerado} antes
de mim, porque ele era preferível a mim]. Nesse versículo, o evangelista
claramente está apontando à eterna geração do Verbo, trazendo, como
comentarista, o Batista. Está na mesma linha do próprio Jesus que afirmou:
antes que Abraão existisse, EU SOU. (Jo 8,58). O problema é que isso indicaria
uma visão trinitária do Batista e uma revelação especial que mesmo a Mãe de
Jesus ignorava (Lc 2, 50). Por isso, muitos exegetas pensam que a frase é mais
um comentário redacional do evangelista do que uma afirmação do Batista.
Seguramente que a frase formal do Batista foi: ¨Ele é maior do que eu e por
isso eu, como seu mais humilde servidor [ou escravo], nem sou digno de desatar
as correias de suas sandálias para lavar os pés dEle¨ (vs 26-27). Mas, segundo
as normas do costume local, só é maior aquele que nasce primeiro e por isso o
evangelista traz esse comentário sobre a origem de Jesus em lábios do Batista.
Um caso especial foi o de Jacó que colocou Efraim diante de Manassés sendo este
último o primogênito (Gn 48, 17-20). Uma solução nova é pensar que o Batista,
seguindo o sentimento geral, pensasse que o Messias se identificava com o
profeta Elias que devia vir nos últimos tempos. Jesus mesmo identifica o
Batista com Elias (Mt 17, 12) e os representantes legais perguntam se ele, o Batista era Elias (Jo 1, 21). Caso
a ideia do Batista fosse a de que Jesus era Elias, segundo Malaquias 3, 1-2, pois iria batizar [purificar] com
fogo, exatamente como o Batista predizia ser o trabalho de Jesus (Mt 3, 11),
evidentemente ele, Jesus, tinha nascido antes do testemunhante.
O PARÊNTESE:
Pois eu não o tinha conhecido, mas para que fosse manifestado a Israel, por
isso vim eu batizando na água (31). Et ego nesciebam eum sed ut manifestaretur
Israhel propterea veni ego in aqua baptizans. O evangelista é um experto ao
oferecer o testemunho do Batista. Em primeiro lugar é um testemunho indireto:
João não conhecia Jesus. Outra afirmação
de João é a de que o seu batismo tinha como fim principal o de revelar, através
do mesmo, quem era o que devia batizar com o batismo verdadeiro e ser mostrado
a Israel como Filho de Deus (V 32-33). Logo seu testemunho deriva unicamente da
revelação, como profeta, e consequentemente, é verdadeiro. Na sua primeira
carta, o nosso evangelista afirma que é testemunho procedente de Deus, aquele
que afirma ser Jesus o Messias. Quem o negar é o Anticristo, que já está
operando no mundo. (1 Jo 4, 2-3). Esta afirmação propõe uma nova visão de quem
realmente é o Anticristo: não uma pessoa
em particular, mas todas as pessoas que se opõem ao que o evangelista afirma
ser o testemunho recebido do céu: Jesus é o Filho de Deus.
SEGUNDO
TESTEMUNHO: E testemunhou João dizendo que tenho visto o Espírito, descendo,
como pomba, do céu e pousando sobre ele (32). Et testimonium perhibuit Iohannes
dicens quia vidi Spiritum descendentem quasi columbam de caelo et mansit super
eum. O verdadeiro testemunho é a revelação particular que o Batista teve e que
declara publicamente: era a vista do Espírito descer do céu, como pomba, e
pousar sobre ele. Com isso coincide com os sinóticos. Só que aqui claramente
não é Jesus o que nota a presença do Espírito, como em Marcos e Mateus, ou em presença
de uma pequena multidão, como parece afirmar Lucas. Os sinóticos nos oferecem a
voz do céu. João, muito mais modesto em sua apresentação, distingue a voz
[precedente], do pouso do Espírito que segue a admoestação. É possível pensar
que o quarto evangelista seja mais preciso do ponto de vista histórico e que
seja o verdadeiro relato. A tradição modificou um pouco –não de modo essencial-
mas em suas variantes circunstanciais, o fato de ser João o depositário da
revelação, por meio da voz, e da Teofania, por meio da visão. Por isso, seu
testemunho do pouso do Espírito é validíssimo, especialmente que isso
justificava seu batismo (31) muito mais do que a finalidade do perdão dos
pecados. A este testemunho apela Jesus para reforçar sua autoridade (Jo 5, 36).
De tudo o que temos visto e comentado, é claro que o autor do quarto evangelho
era um discípulo querido do Batista, que seguiu suas ordens de tomar como
prioridade quem vinha depois, mas que era o primeiro. A forma e o pouso do
Espírito já foram explicados no comentário do domingo anterior.
UMA
REDUNDÂNCIA: E eu, pessoalmente, não o tinha conhecido, mas o que me enviou a
batizar em água, ele mesmo me disse: sobre aquele que vires descendo o Espírito
e permanecendo sobre ele, esse mesmo é quem batiza em Espírito Santo (33). Et
ego nesciebam eum sed qui misit me baptizare in aqua ille mihi dixit super quem
videris Spiritum descendentem et manentem super eum hic est qui baptizat in
Spiritu Sancto. Além de repetir o fato de que entre os dois não existia nenhuma
relação e, portanto, o conhecimento que João tinha de Jesus não era humano, mas
procedia de outra fonte que era transcendental ou divina, João afirma que o seu
batismo era resultado de um mandato divino, de Javé, que não nomeia como era
costume entre os contemporâneos para citar o Hashem [o Nome]. Pois bem, esse
mesmo que lhe mandou batizar é quem lhe disse o modo de conhecer o verdadeiro
Messias: o que batizará em Espírito Sagrado.
Propositadamente falamos em e não com, porque o batismo era uma submersão
completa. Não era um meio com o qual se realiza um ato, mas uma imersão total
em água ou em Espírito. Que entendia João por Espírito? Com toda certeza ele
não sabia nada sobre o mistério trinitário. Logo o Espírito deve ser o poder
divino. Jesus no seu batismo recebeu, como homem, a plena posse dos carismas
que Paulo descreve como obras do poder do espírito em 1 Cor 2, 4 e que descreve
em 12, 28. A
missão de Jesus é a de batizar ou mergulhar o homem no Espírito Santo. É não
unicamente dar ao homem o PODER, mas torná-lo TEMPLO da divindade, como
mergulhado nEla. Possivelmente o Batista não conheceu toda a plenitude desse
novo batismo e só percebeu algum detalhe que o nosso evangelista, conhecido e
praticado o batismo cristão, discerniu em profundidade.
POIS EU TENHO
VISTO E TENHO TESTEMUNHADO: Já que eu tenho visto e tenho testemunhado que este
é o Filho de (o) Deus (34). Et ego vidi et testimónium perhíbui, quia hic est
Fílius Dei.. Os dois verbos estão em perfeito, ou seja, implicam um fato que
ainda perdura em seus efeitos. O Batista confirma de modo presente o que ele
afirmou no passado. Mas este versículo acrescenta uma ideia nova àquela de que
Jesus era quem batizaria com o Espírito [daí que este pousasse sobre Ele]. O
Batista passa a afirmar que esse mesmo era o Eleito de Deus. Outros textos como
o de Merk e Bambas e a Vulgata trazem Filho de Deus. A palavra grega é uiós. É
a palavra técnica para indicar um filho em sentido legal. Distingue-se de
teknon que significa o filho em termos biológicos. Logicamente, como
homem, Jesus não pode ser chamado de
teknon tou Theou, mas teknon Mariam. Com esta expressão, filho de Deus, no AT
designava-se o povo de Israel, amado e protegido por Javé (Êx 4, 22-23). Uma
segunda versão é a que o identifica com o rei davídico enquanto representava o
poder teocrático divino (2 Sm 7, 14 e Sl 2, 7). No NT é o título aplicado a
Jesus pelo Pai, contraposto ao Filho do Homem que Jesus aplica a si mesmo (Mc
1,1 e 3, 11). Como supremo representante do novo Reino, o título pertence a
Jesus, e como humanidade do Verbo, o título é próprio dele em sentido estrito.
Mas nem todos os códices antigos coincidem no testemunho de João que atribui o
título a Jesus. Somente um códice uncial traz a palavra Eklektos [eleito]. Com
o significado de Filho de Deus, é possível que ambas as locuções [filho e
eleito ou rei] signifiquem a mesma coisa: Jesus era o Messias esperado.
PISTAS: 1)
Para os sinóticos a importância recai na Epifania ou Teofania com a voz vinda
do céu. Para o quarto evangelista o testemunho do Batista é a coisa mais
importante porque era a palavra de um profeta, enviado precisamente para
apontar o verdadeiro eleito de Deus. Como dirá Pedro em sua segunda carta 1,
18-19, mais do que a própria experiência, o que vale é a palavra dos profetas.
Por isso, a palavra de João era o testemunho mais autêntico sobre Jesus.
2) Nos tempos
em que foi escrito o quarto evangelho existiam três heresias que João
necessitava combater. Os encratitas, que escolhiam uma vida de ascetismo na
qual a abstinência da comida e bebida eram necessárias como base espiritual e
tinham a continência sexual como principal fundamento da vida cristã. Os
ebionitas [pobres] discípulos dos Essênios e de João Batista aceitavam Jesus,
mas só como homem entre os homens e guardava a fé mosaica como ainda necessária
para a salvação, rejeitando Paulo e admitindo só o evangelho de Mateus.
Finalmente os gnósticos que viam em Jesus um dos eons secundários da evolução
do pleroma divino. No Prólogo, o quarto evangelho os rejeita e a rejeição
continua em todo o discurso do Batista.
3) O
testemunho de João é mais do que nunca necessário nos tempos modernos. E qual
seria o melhor testemunho? Os milagres? A doutrina? Sem dúvida, o amor. Teresa
de Calcutá foi o melhor testemunho tanto na Índia como no mundo inteiro. Jesus
mesmo o diria quando afirmou a seus discípulos: nisto vos conhecerão como meus
discípulos, se tiverdes amor uns para com os outros (Jo 13, 35).
4) O
testemunho que nós recebemos é de que as coisas satisfazem nossas necessidades
e, portanto, completam nossa felicidade. Escutamos os cientistas como se eles
soubessem a verdade última das coisas. Eles são como o menino que tem um
brinquedo e descobrem como funciona, mas não sabem quem foi o inventor do
mecanismo. Sabemos que as palavras dos políticos são enganosas, que as palavras
da imprensa são uma maneira de satisfazer curiosidades muitas vezes mórbidas. O
lucro, em todas as formas possíveis, dirige esses vendedores de mentiras. Qual
é a palavra que diz: é oportuno que eu diminua e que ele cresça? Porque nessa
palavra, que é de João, encontraremos a verdade.