Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus 5
Roteiro Homilético 5: Dom Total
Nascido de
mulher, nascido sob a lei
Quem se lembra
da antiga liturgia gregoriana terá saudades, hoje, da maravilhosa antífona Salve
sancta parens (“Salve, santa genitora”), a participação de Maria no mistério da
Encarnação. Celebramos a oitava de Natal. Ora, ao oitavo dia do parto
confere-se ao filho a circuncisão (nome antigo desta festa), acompanhada da
imposição do nome.
É a integração
na comunidade judaica. A 2ª leitura ressalta a maternidade e o rito judaico:
“Nascido de mulher, nascido sob a Lei” (Gl 4,4). Mediante a figura de Maria é
celebrada a inserção de Jesus na humanidade, especificamente, na comunidade
judaica. Pois Jesus não era “bom demais” para nascer como homem, nem para ser
submetido à lei judaica. Com isso combina bem o fato de celebrarmos essa festa
no início do ano civil, lembrando a bênção do ano novo israelita (1ª leitura),
reforçada pelo pedido de bênção no salmo responsorial. Aliás, o nome que Jesus
recebe (evangelho) é uma bênção: Ieshua (‘= “Javé salva”).
Através do
nascimento maravilhoso, Maria deu Jesus à humanidade como um presente de Deus
(cf. 4° dom. do Advento), no seio de um povo com leis e costumes, povo sobre o
qual Deus faz “brilhar sua face”, e o nome de Jesus traz a bênção do Senhor
Deus. Jesus, “o Senhor salva”, este é o nome que doravante será invocado sobre
a humanidade (cf. Nm 6,27).
A mediação da
comunidade de Israel no projeto salvífico de Deus nos ensina que Deus não ama
em geral, abstratamente, mas através de pessoas e comunidades concretas. Só
aquilo que é concreto pode ser realidade. Assim como Maria, no seio do povo de
Israel, foi o caminho concreto para o Salvador, serão comunidades concretas as
portadoras de Cristo como salvação de Deus para o mundo hoje. Assim, Maria é
protótipo da Igreja e das comunidades eclesiais (cf. oração do dia).
A festa de
hoje remete também à renhida discussão teológica que reclamou para Maria o
titulo de Theótokos, “Genitora (Mãe) de Deus” (Concílio de Éfeso). Decerto,
Deus não tem mãe, mas escolheu Maria como mãe para o Filho que em tudo realiza
a obra de Deus. Santificou em Maria a maternidade quando o Filho assumiu a
humanidade. Deus experimentou a realidade íntima da maternidade em Cristo. A
maternidade é, como a humanidade, capax Dei, capaz de receber Deus… Deus é tão
grande que conhece também o mistério da maternidade, e por dentro! (Para captar
isso talvez tenhamos de modificar um pouco nosso conceito de Deus.)
Maria, “Porta
do Céu”
Nas ladainhas
chamamos Maria “Porta do Céu”. Porta para nós subirmos, ou para Deus descer? A
festa de hoje confirma as duas interpretações.
“Nascido de
mulher, nascido sob a Lei”, assim Paulo qualifica Jesus (1ª leitura).
Jesus nasceu
como todo ser humano de uma mãe humana, Maria, e dentro de uma sociedade
humana, a sociedade
de Israel, com
sua “lei”, regime ao mesmo tempo religioso e sociopolítico. O evangelho narra
que Jesus, no oitavo dia do nascimento, foi acolhido na sociedade judaica pela
circuncisão e pela imposição do nome, como teria acontecido a qualquer
masculino dentre nós se tivesse nascido naquela sociedade.
Maria é,
portanto, mãe do verdadeiro homem e judeu Jesus de Nazaré, mas nós a celebramos
hoje como “Mãe de Deus”… Como se conjugam essas duas maternidades? Não são
duas, são uma só!.
O título “Mãe
de Deus” foi conferido a Maria pelo Concílio de Éfeso no ano 431 d.C. Este
mesmo concílio insistiu que Jesus foi igual a nós em tudo menos o pecado (cf.
Hb 4, 15) e viveu e sofreu na carne de maneira verdadeiramente humana. Vinte
anos depois, o concílio de Calcedônia chamou Jesus “verdadeiramente Deus e
verdadeiramente homem”. É por ser mãe de Jesus humanamente que Maria é chamada
Mãe de Deus, pois a humanidade e a divindade de Jesus humanamente que Maria é
chamada Mãe de Deus, pois a humanidade e a divindade de Jesus não se podem
separar. Dando Jesus ao mundo Maria deu Deus a todos nós.
Em Jesus,
Maria faz Deus nascer no meio do povo. Maria é o ponto de inserção de Deus na
humanidade. Neste sentido ela é “porta do céu”, porta para Deus que desce até
nós e pela qual nós temos acesso a Deus. Toda mulher-mãe é ponto de inserção de
vida nova no meio do povo. Em Maria, essa vida nova é vida divina. Deus se
insere no povo por meio da maternidade que ele mesmo criou.
De maneira
semelhante, Deus respeita também a Lei que ele mesmo criou e comunicou ao povo.
Seu Filho nasceu sob a Lei e foi circuncidado conforme a Lei. As estruturas
políticas e sociais do povo, quando condizentes com a vontade de Deus, são
instrumento para Deus se tornar presente em nossa história. Deus mostrou isso
em Jesus. E quando as leis e estruturas são manipuladas a ponto de se tornarem
injustas, o Filho de Deus as assume para as transformar no sentido do seu amor.
Por isso, Jesus morreu por causa da Lei, injustamente aplicada a ele.
Assim como
pela maternidade humano-divina Maria se tornou “Porta do Céu”, a comunidade
humana é chamada a tornar-se acesso de Deus ao mundo e do mundo a Deus. A vida
do povo, suas tradições, cultura e estruturas políticas e sociais devem ser um
caminho de Deus e para Deus, não um obstáculo. Por isso é preciso transformar a
vida humana e as estruturas da sociedade, quando não servem para Deus e não
condizem com a dignidade que Deus lhes conferiu pelo nascimento de Jesus de
mulher e sob a Lei.