Roteiro Homilético 3: Vida Pastoral
Por Pe. Johan Konings, sj
Professar nossa fé em Cristo,
protagonista da vida e da graça
I. Introdução geral
Poucos anos atrás, sobretudo em
certos ambientes intelectuais e nas universidades, era comum alguém esconder
sua fé cristã e, muito mais, seu catolicismo. Pensava-se que, no intuito de
respeitar as convicções de todo mundo, não cabia mostrar a própria fé. Se é que
se tinha. Ora, tal atitude é desonesta. Se quero realmente dialogar com alguém,
tenho de mostrar o que eu penso. Diálogo não é uma guerra de trincheira. A
verdade nasce do diálogo das verdades de cada um. Não posso escondê-las, embora
possa mostrá-las pouco a pouco para deixar o diálogo amadurecer.
O ocultamento da fé não ficou sem
reação. De repente, houve a volta da religiosidade, sobretudo de certa
religiosidade popular e tradicional, não amadurecida no diálogo com a
consciência do mundo atual e nem sempre interessada em ouvir “as alegrias e as
esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos
pobres e de todos os que sofrem”, de que fala a primeira frase da Constituição
Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II. Nem toda religiosidade que se
apresenta como cristã é espelho do evangelho de Jesus Cristo.
Assim, entre o indiferentismo,
por um lado, e as manifestações de religiosidade sensacionalista, por outro, o
que significa a verdadeira profissão de fé no Cristo do evangelho?
II. Comentário dos textos
bíblicos
I leitura: Jr 20,10-13
A primeira leitura de hoje trata
do profeta perseguido e da firmeza que ele encontra em Deus. Jeremias vive no
tempo do declínio do poder do Egito, arrimo dos reis de Judá naquele tempo. O
novo poder da região são os babilônios. Essa é a realidade da história, e
contra fatos não há argumentos. Jeremias tem de proclamar a verdade que Deus
lhe faz ver com lucidez profética. É decisivo não aquilo que serve para o rei,
ligado ao Egito, mas aquilo que serve para o povo todo, exposto a uma possível
invasão dos babilônios. Jeremias ameaça as autoridades pró-egípcias, anunciando
a destruição de Jerusalém e a deportação do povo no exílio babilônico. Por
isso, o rei e as autoridades de Jerusalém querem condená-lo por alta traição.
Ele está abandonado por todos e até acha que Deus o fez “entrar numa fria”,
como sugerem os versículos imediatamente anteriores a nossa leitura (Jr
20,7-9). Mas o profeta reencontra a certeza de que Deus está com ele, como no
começo de sua vocação (v. 11, cf. Jr 1,19). Deus “salvou a vida de um pobre
homem das mãos dos maus” (v. 13).
O salmo responsorial (Sl 69[68],8-10.14.17.33-35)
vem oportunamente sublinhar a figura do justo perseguido, que, contudo, é
confiante em Deus.
Evangelho: Mt 10,26-33
O centro da liturgia da Palavra
de hoje é o final do sermão missionário do Evangelho de Mateus. No domingo
passado, ouvimos o início desse sermão, em que Cristo convida a orar para que
Deus envie operários para a colheita, para anunciar o evangelho do Reino. Hoje
ouvimos a exortação final à profissão de fé intrépida, num contexto de
resistência e até de perseguição. Sem dúvida, a missão é uma alegria, mas
também, muitas vezes, um sinal de contradição, semelhante à sorte de Jeremias,
o profeta rejeitado da 1ª leitura. Nos versículos que precedem o trecho de
hoje, Jesus tinha predito as perseguições (10,17-25). Agora ressoa sua
exortação final: não devemos temer os homens (10,26.28.31). Os apóstolos não
precisam importar-se com a própria vida: a mensagem será ouvida (10,28-31). A
promessa final (10,32-33) vale tanto para o ouvinte quanto para o pregador:
quem se solidariza com Cristo tem a solidariedade de Cristo.
Morrer ou ser rejeitado pelos
próprios destinatários da mensagem é uma constante na vida dos profetas. É o
que ocorreu a Jeremias e também à Igreja perseguida, e nunca houve tantos
mártires cristãos como em nossos dias! A mensagem do profeta e de Cristo é para
que não tenhamos medo: na provação, Deus está com quem professa a fé nele. Essa
presença de Deus – em Cristo – é um tema preferido do Evangelho de Mateus.
Constitui a moldura de seu evangelho. Em Mt 1,23, Jesus é chamado “Emanuel,
Deus conosco”. No fim, Jesus ressuscitado declara: “Estarei convosco até o fim
do mundo” (28,20). Quando a Igreja cumpre sua missão profética, não deve recear
os que matam o corpo, pois Deus cuida até de um par de pardais. Até os cabelos
de nossa cabeça estão contados (evangelho, vv. 28-29).
Quem confessar o Cristo diante
dos homens, Cristo o “confessará” diante de Deus: dará uma palavrinha de
recomendação. Mas quem se envergonhar por causa de Cristo, o Filho do homem
(título escatológico com que Jesus se identifica) terá vergonha dele também
diante do Pai. Isso aí não é uma espécie de revanche de Jesus. É a mais pura
lógica: Jesus veio para ser o servo e profeta da justiça, da vontade salvadora
do Pai. Ele nos associou a sua obra (cf. domingo passado). Então, se nós o
renegamos, que fazemos da missão que ele nos confiou? Como poderíamos ainda ter
parte com ele? Se ele não pode contar com nossa adesão – ainda que frágil –,
nós também não podemos contar com ele, pois somos seus amigos, e amizade é
recíproca.
A primeira Igreja era muito
severa quanto à desistência da fé, a “apostasia”. Tinha consciência de que não
é possível ser amigo pela metade, fiel “dia sim, dia não”. Os que vacilavam
eram severamente censurados e, se recaíssem, eram excomungados, entregues ao
juízo de Deus. Por não termos bem presente a origem de nossa fé, nós já não
somos mais tão exigentes; mas a amizade com Jesus é exigente por si,
independentemente de vivermos num ambiente marcado pelo materialismo bruto,
pelo indiferentismo ou até por uma religiosidade que não se preocupa com o
reino de Deus e com sua justiça – a justiça da fraternidade que Deus deseja
para todos os seus filhos. Às vezes é até mais fácil dizer a um ateu: “Eu ponho
minha fé em Jesus de Nazaré” do que explicar, a certas pessoas que bradam
slogans cristãos, que a fé prática, ensinada por Cristo, começa com a
bem-aventurança dos pobres.
II leitura: Rm 5,12-15
A segunda leitura continua com a
carta aos Romanos (cf. domingo passado). O trecho de hoje é muito
significativo e muitas vezes mal explicado. Inicia-se dizendo que todos
precisam de salvação. Com o pecado de Adão (= “o ser humano”), o pecado e a
morte vieram sobre todos (5,12). Mas o que Paulo quer anunciar não é isso; é
apenas o pano de fundo. O que Paulo quer anunciar é que, com Cristo, chegaram a
graça e a reconciliação, tão universais quanto o pecado de Adão. A morte já não
domina. Prova disso é a ressurreição de Cristo. Se a graça, o projeto original
de Deus, ficou alijada pelo pecado que pesa sobre a humanidade desde seu
primeiro ancestral, agora, pelo contrário e de modo superlativo, todos recebem
a graça gratuitamente – uma tautologia! – por Cristo, que deu sua vida por
todos. Jesus passa Adão a limpo.
III. Dicas para reflexão:
Perseguição e firmeza
Inúmeros – hoje mais que nunca –
são os perseguidos, martirizados e mortos por defenderem a justiça e a
solidariedade. Quem é profeta é perseguido, mas, se permanece fiel à sua
missão, Deus não o abandona. Quem luta por Deus pode contar com ele. É o que
nos ensina a primeira leitura.
Jesus enviou seus discípulos para
anunciar e implantar o reino de Deus. No evangelho de hoje, ele ensina aos
discípulos-seguidores a firmeza profética. Ensina-os a não ter medo daqueles
que matam o corpo, mas a viver em temor diante daquele que tem poder para
destruir corpo e alma no inferno, o Juiz supremo (Mt 10,28).
Jesus representa o Pai, e o Pai
endossa a obra de Jesus. Quem for testemunha fiel de Cristo será por ele
recomendado a Deus. Isso era válido no tempo em que o evangelho foi escrito,
quando se apresentavam as perseguições e as deserções. Continua válido hoje. Se
formos fiéis a Cristo, que nos associa à sua missão, podemos confiar que Deus
mesmo não nos deixará afundar. Em Jesus está nossa firmeza. Por isso
respondemos com convicção “Amen” (= “está firme”) à invocação “por Cristo, com
Cristo e em Cristo” no fim da oração eucarística. Se, porém, deixarmos de dar
nosso testemunho e cedermos diante dos ídolos (poder, lucro, manipulação etc.),
espera-nos a sorte dos ídolos: o vazio, o nada… É uma questão de opção.
Proclamar o Reino em
solidariedade com Cristo significa, hoje, empenho pela justiça. Empenho
colocado à prova por forças externas (perseguições, matanças de agentes
pastorais junto ao povo) e internas (desânimo, acomodação etc.). No nosso
engajamento, podemos confiar em Deus e em sua providência; e, por causa de
Deus, podemos confiar em nosso engajamento, permanecer firmes naquilo que
assumimos, mesmo correndo perigo de vida. Pois é melhor morrer do que desistir
do sentido de nossa vida. É melhor morrer em solidariedade com Cristo do que
viver separado dele.
A mensagem principal do evangelho
de hoje é a posição central de Jesus em nossa vida. É isso que devemos dar a
conhecer por nossas palavras e ações. É segundo nossa fé professada em Jesus ou
segundo nossa negação dele que nossa vida é julgada diante de Deus. Isso não é
ambição desmedida de Jesus, mas mero realismo. O caminho que Jesus nos mostra,
e a respeito do qual ele pede nosso testemunho, é o caminho da vida. Não
podemos, diante do mundo, professar o contrário, pois então negamos, sob os
olhos de Deus, o caminho de vida que, em Jesus, ele nos proporciona. É uma
questão que diz respeito a Deus, referência última do nosso viver. Não podemos concordar
com um sistema econômico, social, político e até pretensamente cultural que
exclui, cada dia mais, as pessoas da paz e do bem-estar comum e, inclusive,
leva ao abismo o próprio ambiente da vida humana. Não é para um sistema de
morte que Jesus deu sua vida. Devemos professar Jesus que deu sua vida para que
todos tenham vida e possam viver na abundância da graça que ele trouxe ao
mundo.
Pe. Johan Konings, sj
Nascido na Bélgica, reside há
muitos anos no Brasil, onde leciona desde 1972. É autor em teologia e mestre em
Filosofia e em Filologia Bíblica pela Universidade Católica de
Lovaina. Atualmente é professor
de Exegese Bíblica na FAJE, em Belo Horizonte. Dedica-se principalmente aos
seguintes assuntos: Bíblia – Antigo e Novo Testamento (tradução), evangelhos
(especialmente o de João) e hermenêutica bíblica. Entre outras obras, publicou:
Descobrir a Bíblia a partir da liturgia; A Palavra se fez livro; Liturgia
dominical: mistério de Cristo e formação dos fiéis – anos A-B-C; Ser cristão;
Evangelho segundo João: amor e fidelidade; A Bíblia nas suas origens e hoje;
Sinopse dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da “Fonte Q”. E-mail:
konings@faculdadejesuita.edu.br