Roteiro
Homilético cnbbleste2.org.br
1ª LEITURA - Is 53,10-11
Estes dois versículos pertencem ao
quarto canto do Servo do Senhor (Is 52,13-53,12; os outros três cantos são: Is
42,1-9; 49,1-9a; 50,4-9). O assunto do quarto canto é o sofrimento, a morte e a
vitória do Servo como vítima de injustiça. A impressão geral é que o Servo está
totalmente abandonado até mesmo por Deus. Mais ainda parece que é Deus que o
castiga para através do sofrimento ele consiga a remissão dos pecados do povo.
Apesar da clareza do primeiro versículo
de hoje, sabemos pelo conjunto da Sagrada Escritura que “Deus não quer a morte
do pecador, mas que ele viva”. E o Servo nem pecador era. Na verdade, Deus não
se alegra com o sofrimento do justo. Seu sofrimento provém do pecado do mundo,
da sociedade injusta, da opressão dos poderosos. Mas Deus pode servir-se do
sofrimento do justo para fazer triunfar a sua causa; seu sofrimento não é
consequência de seus próprios pecados, mas dos pecados dos outros. O
importante, então, para o justo era oferecer a vida como sacrifício pelos
pecados dos outros e fazê-lo de modo consciente como o fez o Servo do Senhor.
Ele sofre como se fora culpado para a salvação dos culpados. Qual é o resultado
do sacrifício do Servo?
a) “Ele há de ver seus descendentes e
prolongará sua existência”. Isto significa a vitória da justiça, o triunfo da
geração dos humilhados.
b) “E por ele a bom termo chegará o projeto do
Senhor”, apesar da aparente vitória do pecado, da injustiça e da morte. Deus
está do lado dos fracos, marginalizados e oprimidos - os servos sofredores.
c) O justo e com ele todos os justificados verão a luz e ficarão
satisfeitos, ou seja, contemplarão a luz da vitória de Deus, seu clarão de
glória.
d) Ele justificará a multidão, quer dizer, ele
será o portador da salvação de Deus para todos. A essa altura parece inútil
perguntar a quem se refere essa profecia do Servo sofredor, principalmente,
quando se sabe que ao narrar a paixão de Jesus, os Evangelhos retomam, quase
literalmente, o quarto canto do Servo.
2ª
LEITURA - Hb 4,14-16
Aqui está o cerne da carta aos Hebreus:
Jesus Cristo Sumo e eterno Sacerdote é o único mediador entre Deus e os homens.
É nesta fé que a comunidade cristã precisa permanecer firme. Era costume em
Israel o sumo sacerdote entrar uma vez por ano na parte central e mais Sagrada
do Templo de Jerusalém que se chamava “Santo dos Santos”. Ali estava a Arca da
Aliança. Era, através de ritos purificatórios e através do sacrifício de um
animal, que o sumo sacerdote se tornava mediador entre Deus e o seu povo,
alcançando para o povo a misericórdia de Deus. Jesus, o Filho de Deus, entrou
no céu uma vez por todas, através do sacrifício de sua própria vida. De fato,
ele se imolou por nós e Deus o ressuscitou, colocando-o à sua direita. Ele é
agora o único mediador entre Deus e os homens. Com o sacrifício redentor de
Cristo todos os antigos sacrifícios foram abolidos e com eles qualquer
mediação. Agora, o único mediador é Jesus. E tem mais, Jesus nos compreende;
ele é capaz de se compadecer de nossas fraquezas, pois ele é igual a nós em
tudo, com exceção do pecado. Ele padeceu toda a sorte de sofrimentos. Carregou
sobre si todas as dores do povo como o Servo do Senhor (1ª Leitura). Diante de
toda essa solidariedade do Filho de Deus, que se assentou no trono da graça
junto do Pai, a comunidade cristã sofrida, perseguida, vivendo situações
difíceis, deve ter duas atitudes: permanecer firme na fé e aproximar-se com
total confiança diante de Deus através de Jesus. Ele veio ao mundo, tornou-se
sacerdote e único mediador exatamente, para através dele, alcançarmos do Pai
misericórdia e graça.
EVANGELHO - Mc 10,35-45
Em Mc 10,32-34 temos o terceiro anúncio
da paixão no evangelho de Marcos. Os outros dois estão em Marcos 8,31-32 e
9,10.31. Logo após o terceiro anúncio da paixão temos o texto de hoje. Os discípulos
não entendem o ensinamento de Jesus sobre o seu messianismo e sobre o que é ser
cristão.
Os discípulos querem poder e glória
Quem encarna essa ambição política são
os dois filhos de Zebedeu: Tiago e João querem se sentar ao lado de Jesus no
governo de Israel, querem postos de honra e glória. Mal sabem eles que nestas
posições, no trono da cruz de Jesus, estavam dois marginalizados! Jesus quer
ensinar que só alcançará a glória quem passar pela cruz do serviço, da doação
de si mesmo. É, justamente, a busca de poder e de glória que massacra os
servidores do Reino. Jesus declara a ignorância dos discípulos e pergunta se
eles podem beber o cálice do seu sofrimento ou sofrer o batismo da sua morte na
cruz. Eles dizem que sim. Este sim deve ser uma consciência adquirida depois do
martírio dos primeiros seguidores de Jesus. Jesus confirma os futuros mártires,
mas esclarece que o lugar de glória é dado pelo Pai. Os outros dez se aborrecem
com este pedido imbecil, mas também eles se alimentam dessas esperanças políticas
triunfantes.
Jesus ensina o serviço e a humildade.
Os discípulos não sabem o que estão
pedindo, mas sabem da opressão, do abuso dos grandes sobre os pequenos, dos que
têm poder sobre os que não têm. A comunidade de Jesus é diferente das sociedades
políticas. Quem busca poder e glória, provoca sempre aborrecimentos,
marginalização, violência. Jesus quer formar uma nova comunidade, onde não há
diferenças, onde não há distinção entre os grandes que são servidos e os
pequenos que são servidores. Jesus quer nivelar sem marginalizar, quer nivelar
dignificando a todos a partir do serviço. São todos grandes na comunidade de
Jesus, pois todos são servidores: “Quem quiser ser o maior entre vós seja
aquele que vos serve e quem quiser ser o primeiro entre vós seja o escravo de
todos”. E para isso Jesus deixa seu exemplo, ele “veio para servir e dar a sua
vida como resgate de muitos”. “Resgate era a soma paga para libertar escravos”.
Jesus serviu com um serviço total. Assim ele libertou a todos da servidão que oprime,
e convida a todos para um serviço que liberta.
Roteiro
Homilético 1 - Liturgia: Mensagem franciscanos.org
Jesus veio para servir e dar sua vida
Podemos gostar de crucifixos de marfim,
com gotas de sangue em rubis, como era a moda nas mansões coloniais do século
XVIII. Mas não gostamos de um homem diminuído, quebrado, mutilado, ofensa à
humanidade. Ora, Deus gosta – não por sadismo (como se precisasse de castigar
alguém), mas por verdadeiro amor, que é comunhão, pois se reconhece no justo
que foi esmagado por causa da justiça. Num só justo assim, Deus mesmo assume a
dívida de muitos, de todos. Os judeus aprenderam isso no exílio babilônico. Não
se sabe quem foi o justo torturado pelos ímpios, do qual fala Is 52,13-53,12
(1ª leitura), mas sabemos o que Israel dele aprendeu: enquanto diante dele
cobriam o rosto, aprenderam que ele carregou os pecados do povo e morreu por
eles.
Como é possível isso? “Chorarão sobre
aquele que traspassaram” (Zc 12,10). Parece que a humanidade precisa ver em
alguém o resultado de sua malícia, para dela se arrepender. As reivindicações
sociais só são concedidas depois de algumas (ou muitas) mortes. Os movimentos
de emancipação só vencem quando há mártires. Infeliz humanidade, que só aprende
de suas vítimas. Por isso é que Deus ama os que são vitimados. Não porque goste
de vingança e sangue, mas porque eles são os seus melhores profetas, seus
porta-vozes. Ele se identifica com eles, exalta-os, inclusive, na própria
veneração do povo, que, venerando-os, se arrepende de suas faltas e por eles é
perdoado e verdadeiramente libertado. Deus ama duplamente o justo sacrificado:
a primeira vez, por ser justo e testemunhar a justiça; a segunda, porque seu
sangue leva os outros à justiça.
O justo padecente é o modelo conforme o
qual Jesus concebe sua missão (evangelho). Entretanto, os seus melhores
discípulos pretendem reservar-se os lugares de honra no Reino (Mt 19,16ss
abranda a situação, dizendo que foi a mãe deles que o pediu … ). Jesus então
lhes ensina que tais pretensões cabem aos poderosos deste mundo, mas não têm
vez no Reino de Deus. No Reino de Deus se deve beber o cálice de Jesus, receber
o batismo que ele recebe – e os discípulos, sem entender o que Jesus quer
dizer, confirmam que eles farão isso. Como, de fato, o fizeram, depois que o
exemplo de Jesus lhes ensinara o que estas figuras significavam.
O “poder” no Reino de Deus consiste no
servir. O amor só tem poder enquanto ele é doado e se coloca a serviço. Para
atingir o coração (e a Deus interessa só isso) é preciso penetrar até o nível
da liberdade da pessoa. Ninguém ama por constrangimento. A liberdade surge
quando alguém pode tomar ou não tomar determinada decisão. Diante da força que
se impõe, não há liberdade. Diante do serviço de alguém que se toma submisso a
mim, posso decidir alguma coisa. Por isso, Jesus quer estar a serviço, para que
se possa livremente decidir que “reino” se prefere.
Servir é ser pequeno. Ministro (servo)
tem a ver com mínimo. Frente ao pequeno, o homem revela o que tem no seu
coração: bondade ou sede de poder. Jesus quis ser pequeno, para que os corações
se revelassem, não tanto a ele e Deus, que os conhece, mas a si mesmos, pois o
maior desconhecido para mim é meu próprio coração. Assumindo o caminho do
paciente testemunho da verdade, divergente das conveniências da sociedade
dominante, Jesus se tomou servo e fraco, sempre exposto e sem defesa. Tornou-se
cordeiro (cf. Is 53,7). O resultado só podia ser o que de fato aconteceu. Foi
eliminado, e até seus discípulos tiveram vergonha dele. Mas, muito mais do que
no caso do justo de Is 53, Jesus tomou-se “pedra de toque” dos corações e da
sociedade toda, com suas estruturas e tudo.
Esta é a mensagem que Mc nos deixa
entrever a partir do 3° anúncio da Paixão (Mc 10,32-34; estes versículos
poderiam ser incluídos na leitura, para mostrar melhor que as palavras sobre o
servir não são apenas uma crítica aos filhos de Zebedeu, mas uma interpretação
do caminho do Cristo).
A 2ª leitura cabe bem neste contexto
litúrgico. Embora a figura do sacerdote não seja exatamente a do Servo,
entendemos perfeitamente que é o Cristo-Servo que, pela fidelidade à sua
missão, se torna o verdadeiro “santificador”. Hb acentua que exatamente a
participação de Jesus nos mais profundos abismos da condição humana – exceto o
pecado – o qualifica para ser o melhor sacerdote imaginável. Um sacerdote que
não está do outro lado da barra, mas que participa conosco. E, num seguinte
passo, dirá ainda que este sacerdote não precisa de sacrifícios alheios à nossa
condição humana (portanto, meramente simbólicos), mas torna sua própria vida
instrumento de salvação.
Do livro “Liturgia Dominical”, de Johan
Konings, SJ, Editora Vozes
A grande ambição: servir e dar a vida
O evangelho de hoje é provocador. Os
melhores alunos de Jesus solicitam uma coisa totalmente contrária ao que ele
tentou ensinar. Pedem para sentar nos lugares de honra no seu reino, à sua
direita e à sua esquerda. Não compreenderam nem a pessoa, nem o modo de agir de
Jesus. Seu pedido era tão vergonhoso que o evangelista
Mateus, quando contou mais tarde a mesma
história, disse que foi a mãe deles que pediu (MT 20,20).
Devemos situar esse episódio no seu
contexto. Mc 8,31-10,45 é a grande instrução de Jesus a caminho, balizada pelos
três anúncios da Paixão. O evangelho de hoje é a continuação do 3° anúncio da
Paixão: estamos no fim da instrução, e parece que até os melhores alunos ainda
não aprenderam nada. De fato, só aprenderão depois da morte e ressurreição de
Jesus. Por enquanto, em contraste com a incompreensão dos alunos, eleva-se a grandeza
da lição final: o dom da própria vida.
A 1ª leitura prepara-nos para
compreender melhor o evangelho. É o 4° cântico do Servo Sofredor. No seu
sofrimento ele assumiu a culpa de muitos. Por isso, Deus o ama duplamente:
porque ele é justo e porque seu sangue leva os outros a serem justos.
Infelizmente, a humanidade precisa de vítimas da injustiça para reencontrar o
caminho da justiça. A recente história da América Latina está cheia disso: os
mártires que com seu sangue testemunharam o caminho da fraternidade. E ao lado
desses mártires de sangue temos ainda os mártires do dia-a-dia, que não são
poucos: pessoas que sacrificam sua juventude para cuidar de pais idosos, que
sacrificam carreira lucrativa para se dedicar à educação dos pobres … São estes
que santificam nosso mundo cruel.
O justo que dá sua vida pelos outros é
chamado “servo”, porque serve. Ele é o antipoder. O povo diz: “Quem pode mais,
chora menos”. O Servo diria: “Quem pode mais, serve menos”. Jesus diria: “Quem
ama mais, sofre mais”. Jesus é a plena realização do “servo”. Aos apóstolos
ambiciosos que desejam ter os primeiros lugares no Reino ele opõe seu próprio
exemplo: “Quem quiser ser o maior entre vós seja aquele que vos serve, e quem
quiser ser o primeiro entre vós seja o escravo de todos. O Filho do Homem não
veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos” (Mc
10,45).
Casualmente, este evangelho coincide com
o trecho de Hb lido na 2ª leitura. Aí o servo de Deus é chamado de sacerdote.
Não no sentido do Antigo Testamento – pois aí os sacerdotes eram muitos e
deviam ser descendentes de Aarão, o que Jesus não era. Mas no sentido de
oferecer a Deus, por todos nós, a própria vida. Aliás, ele é o único sacerdote
conforme o Novo Testamento. Aqueles a quem chamamos de sacerdotes são na
realidade “ministros”, servos do sacrifício exercido por Jesus. Eles ministram
no altar o sacrifício de Jesus, exercendo o sacerdócio ministerial. E os fiéis
unem-se ao dom da vida Jesus exercendo na vida cotidiana o sacerdócio batismal do
povo de Deus.
Do livro “Liturgia Dominical”, de Johan
Konings, SJ, Editora Vozes
Roteiro
Homilético 2 - Liturgia: Dehonianos de Portugal
Tema do 29º Domingo do Tempo Comum
A liturgia do 29º Domingo do Tempo Comum
lembra-nos, mais uma vez, que a lógica de Deus é diferente da lógica do mundo.
Convida-nos a prescindir dos nossos projectos pessoais de poder e de grandeza e
a fazer da nossa vida um serviço aos irmãos. É no amor e na entrega de quem
serve humildemente os irmãos que Deus oferece aos homens a vida eterna e
verdadeira.
A primeira leitura apresenta-nos a
figura de um “Servo de Deus”, insignificante e desprezado pelos homens, mas
através do qual se revela a vida e a salvação de Deus. Lembra-nos que uma vida
vivida na simplicidade, na humildade, no sacrifício, na entrega e no dom de si
mesmo não é, aos olhos de Deus, uma vida maldita, perdida, fracassada; mas é
uma vida fecunda e plenamente realizada, que trará libertação e esperança ao
mundo e aos homens.
No Evangelho, Jesus convida os
discípulos a não se deixarem manipular por sonhos pessoais de ambição, de
grandeza, de poder e de domínio, mas a fazerem da sua vida um dom de amor e de
serviço. Chamados a seguir o Filho do Homem “que não veio para ser servido, mas
para servir e dar a vida”, os discípulos devem dar testemunho de uma nova ordem
e propor, com o seu exemplo, um mundo livre do poder que escraviza.
Na segunda leitura, o autor da Carta aos
Hebreus fala-nos de um Deus que ama o homem com um amor sem limites e que, por
isso, está disposto a assumir a fragilidade dos homens, a descer ao seu nível,
a partilhar a sua condição. Ele não Se esconde atrás do seu poder e da sua
omnipotência, mas aceita descer ao encontro homens para lhes oferecer o seu
amor.
LEITURA I – Is 53,10-11
Leitura do Livro de Isaías
Aprouve ao Senhor esmagar o seu Servo
pelo sofrimento.
Mas, se oferecer a sua vida como vítima
de expiação,
terá uma descendência duradoira, viverá
longos dias,
e a obra do Senhor prosperará em suas
mãos.
Terminados os sofrimentos,
verá a luz e ficará saciado.
Pela sua sabedoria, o Justo, meu Servo,
justificará a muitos
e tomará sobre si as suas iniquidades.
AMBIENTE
O nosso texto pertence ao “Livro da
Consolação” do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55). “Deutero-Isaías” é um nome
convencional com que os biblistas designam um profeta anónimo da escola de
Isaías, que cumpriu a sua missão profética na Babilónia, entre os exilados
judeus. Estamos na fase final do Exílio, entre 550 e 539 a.C..
A missão do Deutero-Isaías é consolar os
exilados judeus. Nesse sentido, ele começa por anunciar a iminência da
libertação e por comparar a saída da Babilónia ao antigo êxodo, quando Deus
libertou o seu Povo da escravidão do Egipto (cf. Is 40-48); depois, anuncia a
reconstrução de Jerusalém, essa cidade que a guerra reduziu a cinzas, mas à
qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim (cf. Is 49-55).
No meio desta proposta “consoladora”
aparecem, contudo, quatro textos (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12)
que fogem um tanto a esta temática. São cânticos que falam de uma personagem
misteriosa e enigmática, que os biblistas designam como o “Servo de Jahwéh”:
ele é um predilecto de Jahwéh, a quem Deus chamou, a quem confiou uma missão
profética e a quem enviou aos homens de todo o mundo; a sua missão cumpre-se no
sofrimento e numa entrega incondicional à Palavra; o sofrimento do profeta tem,
contudo, um valor expiatório e redentor, pois dele resulta o perdão para o
pecado do Povo; Deus aprecia o sacrifício deste “Servo” e recompensá-lo-á,
fazendo-o triunfar diante dos seus detractores e adversários.
Quem é este profeta? É Jeremias, o
paradigma do profeta que sofre por causa da Palavra? É o próprio
Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho da Palavra no ambiente hostil do
Exílio? É um profeta desconhecido? É uma figura colectiva, que representa o
Povo exilado, humilhado, esmagado, mas que continua a dar testemunho de Deus no
meio das outras nações? É uma figura representativa, que une a recordação de
personagens históricas (patriarcas, Moisés, David, profetas) com figuras
míticas, de forma a representar o Povo de Deus na sua totalidade? Não sabemos;
no entanto, a figura apresentada nesses poemas vai receber uma outra iluminação
à luz de Jesus Cristo, da sua vida, do seu destino.
O texto que nos é proposto é parte do
quarto cântico do “servo de Jahwéh”. Nele, porém, o “Servo” não fala; quem
proclama este “cântico” parece ser um coro, que percebeu, no aparente sem
sentido da vida do “Servo”, um profundo significado à luz da lógica de Deus.
MENSAGEM
A primeira parte do nosso texto (vers.
2-3) apresenta-nos o “Servo de Jahwéh”. Não se diz quem é ele, quais são os
seus pais, qual é a sua terra. É uma figura anónima, sem história, obscura,
ignorada, insignificante à luz dos critérios humanos. Recorrendo à imagem
vegetal, o profeta compara-o a uma raiz crescida no deserto, marcada pela
aridez do ambiente circundante, sem beleza e sem características que atraiam o
olhar ou a atenção dos homens (vers. 2). Mais: é uma figura desprezada e
abandonada pelos homens, que vêem o seu sofrimento como um castigo de Deus e
que tapam o rosto diante dele para não se contaminarem (vers. 3). Numa época em
que o sofrimento é sempre visto como castigo pelo pecado, o notório sofrimento
desse “Servo” devia aparecer, aos olhos dos seus concidadãos, como o castigo de
Deus para faltas particularmente graves…
À luz dos critérios de avaliação usados
pelos homens, o “Servo” é um fracassado, um vencido, um ser trágico, abandonado
por Deus e desprezado pelos homens. Seguramente, ele nunca será contado entre
os grandes, os vencedores, aqueles que têm um papel preponderante na construção
do mundo e da história.
À luz da lógica de Deus, porém, a
existência do “Servo” não é uma existência insignificante, perdida, sem
sentido… O sofrimento que o atingiu ao longo de toda a existência não é num
castigo de Deus por causa dos seus pecados pessoais, mas um sacrifício de
reparação que justificará os pecados de muitos. A palavra “reparação” aqui
utilizada pelo Deutero-Isaías é um termo cúltico por excelência. Refere-se a um
ritual sacrificial através do qual o crente vétero-testamentário oferecia um
animal em sacrifício e, por essa oferta, alcançava de Deus o perdão para os
seus pecados. Ao dizer que o sofrimento do “Servo” é um sacrifício de
reparação, o profeta está a dizer que esse sofrimento não é, nem um castigo,
nem uma inutilidade; mas é um sofrimento que servirá para eliminar o pecado e
para gerar vida nova para toda a comunidade do Povo de Deus (os muitos de que fala
o texto). Ao abençoar o seu “Servo”, ao dar-lhe “uma posteridade duradoura”,
uma “vida longa” (vers. 10) e a possibilidade de “ver a luz” (vers. 11), Deus
garante a verdade e a autenticidade da vida do “Servo”.
Dito por outras palavras: o autor deste
texto está convencido de que uma vida vivida na simplicidade, na humildade, no
sacrifício, na entrega e no dom de si mesmo não é, aos olhos de Deus, uma vida
maldita, perdida, fracassada; mas é uma vida fecunda e plenamente realizada,
que trará libertação, verdade, esperança e amor ao mundo e aos homens.
Os primeiros cristãos, impressionados
pela beleza e pela profundidade deste texto, utilizaram-no frequentemente para
procurar compreender a figura de Jesus, que “morreu pela salvação do povo”. Em
Jesus, esta enigmática figura do “Servo de Jahwéh” alcançou o seu pleno
significado.
ACTUALIZAÇÃO
• O nosso texto mostra, uma vez mais,
como os valores de Deus e os valores dos homens são diferentes. Na lógica dos
homens, os vencedores são aqueles que tomam o mundo de assalto com o seu poder,
com o seu dinheiro, com a sua ânsia de triunfo e de domínio, com a sua
capacidade de impor as suas ideias ou a sua visão do mundo; são aqueles
impressionam pela forma como vestem, pela sua beleza, pela sua inteligência,
pelas suas brilhantes qualidades humanas… Na lógica de Deus, os vencedores são
aqueles que, embora vivendo no esquecimento, na humildade, na simplicidade,
sabem fazer da própria vida um dom de amor aos irmãos; são aqueles que, com as
suas atitudes de serviço e de entrega, trazem ao mundo uma mais valia de vida,
de libertação e de esperança. Qual destes dois modelos faz mais sentido para
mim? Quando, no dia a dia, tenho de estabelecer as minhas prioridades e de
fazer as minhas escolhas, deixo-me conduzir pela lógica de Deus ou pela lógica
dos homens? Quem são as pessoas que eu admiro, que eu tenho como modelos, que
me impressionam?
• Onde está Deus? Onde podemos encontrar
o seu rosto, as suas propostas, os seus apelos e desafios? Apresentando-nos a
figura desse “Servo” insignificante e desprezado pelos homens, mas através do
qual se revela a vida e a salvação de Deus, o nosso texto lembra-nos que Deus,
seguindo a sua lógica muito própria vem, tantas vezes, ao nosso encontro na
pobreza, na pequenez, na simplicidade, na fragilidade, na debilidade…
Conscientes desta realidade, poderemos perceber a presença de Deus a nosso lado
nos pequenos gestos que todos os dias testemunhamos e que nos dão esperança,
nas coisas simples e banais que nos enchem o coração de paz, nas pessoas
humildes que o mundo despreza e marginaliza, mas que são capazes de gestos
impressionantes de serviço, de partilha, de doação, de entrega… Não nos
deixemos enganar: Deus não está naquilo que é brilhante, sedutor, majestoso,
espampanante; Deus está na simplicidade do amor que se faz dom, serviço,
entrega humilde aos irmãos.
• Qual o sentido do sofrimento? Porque é
que há tantas pessoas boas, honestas, justas, generosas, que atravessam a vida
mergulhadas na dor e no sofrimento? Trata-se de uma pergunta que fazemos
frequentemente e que o autor do quarto cântico do “Servo” também punha a si
próprio. A resposta que ele encontra é a seguinte: o sofrimento do justo não se
perde; através dele, os pecados da comunidade são expiados e Deus dará vida e
salvação ao seu Povo. Trata-se, sem dúvida, de uma resposta incompleta,
parcial, não totalmente satisfatória; mas encontra-se já nesta resposta a
convicção de que, nos misteriosos caminhos de Deus, o sofrimento pode ser uma
dinâmica geradora de vida nova. Jesus Cristo demonstrará, com a sua paixão,
morte e ressurreição, a verdade desta afirmação.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 32 (33)
Refrão: Desça sobre nós a vossa
misericórdia,
porque em Vós esperamos, Senhor.
A palavra do Senhor é recta,
da fidelidade nascem as suas obras.
Ele ama a justiça e a rectidão:
a terra está cheia da bondade do senhor.
Os olhos do Senhor estão voltados para
os que O temem,
para os que esperam na sua bondade,
para libertar da morte as suas almas
e os alimentar no tempo da fome.
A nossa alma espera o Senhor:
Ele é o nosso amparo e protector.
Venha sobre nós a vossa bondade,
porque em Vós esperamos, Senhor.
LEITURA II – Heb 4,14-16
Leitura da Epístola aos Hebreus
Irmãos:
Tendo nós um sumo sacerdote que penetrou
os Céus,
Jesus, Filho de Deus,
permaneçamos firmes na profissão da
nossa fé.
Na verdade, nós não temos um sumo
sacerdote
incapaz de se compadecer das nossas
fraquezas.
Pelo contrário, Ele mesmo foi provado em
tudo,
à nossa semelhança, excepto no pecado.
Vamos, portanto, cheios de confiança ao
trono da graça,
a fim de alcançarmos misericórdia
e obtermos a graça de um auxílio
oportuno.
AMBIENTE
Já vimos, nos domingos precedentes, que
a Carta aos Hebreus se destina a comunidades cristãs em situação difícil,
expostas a tribulações várias e que, por isso mesmo, estão fragilizadas,
cansadas e desalentadas. Os crentes que compõem essas comunidades necessitam
urgentemente de redescobrir o seu entusiasmo inicial, de revitalizar o seu
compromisso com Cristo e de apostar numa fé mais coerente e mais empenhada.
Nesse sentido, o autor da “carta”
apresenta-lhes o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência, cuja missão é
pôr os crentes em relação com o Pai e inseri-los nesse Povo sacerdotal que é a
comunidade cristã. Uma vez comprometidos com Cristo, os crentes devem fazer da
sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o
autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva,
capaz de revitalizar a sua experiência de fé, enfraquecida pela hostilidade do
ambiente, pela acomodação, pela monotonia e pelo arrefecimento do entusiasmo
inicial.
O texto que nos é proposto está incluído
na segunda parte da Carta aos Hebreus (cf. Heb 3,1-5,10). Aí, o autor apresenta
Jesus como o sacerdote fiel e misericordioso que o Pai enviou ao mundo para
mudar os corações dos homens e para os aproximar de Deus. Aos crentes pede-se
que “acreditem” em Jesus – isto é, que escutem atentamente as propostas que
Cristo veio fazer, que as acolham no coração e que as transformem em gestos
concretos de vida.
MENSAGEM
Jesus é, para todos os crentes, o grande
sumo-sacerdote que “atravessou os céus” para alcançar misericórdia para todos
os crentes (vers. 14). A expressão “atravessou os céus” refere-se,
naturalmente, à realidade da incarnação: Jesus, o Filho de Deus, veio ao
encontro dos homens como sumo-sacerdote, a fim de eliminar o pecado que impedia
a comunhão entre os homens e Deus e levar os homens ao encontro de Deus. Aqui
evoca-se o esforço de Deus, através do seu Filho, no sentido de refazer uma
comunidade de vida com os homens e de os reconduzir ao encontro da vida eterna
e verdadeira.
Diante dessa acção incrível de Deus,
fruto do seu amor pelo homem, os crentes devem responder com a fé – isto é, com
a aceitação incondicional da proposta de Jesus (“conservemos firme a fé que
professamos”). Aderir à proposta de Jesus é reentrar na comunhão com Deus,
assumir-se como família de Deus, receber de Deus vida em abundância.
Apesar de ser Filho de Deus, Jesus, o
sumo-sacerdote, não é, no entanto, um ser celestial estranho, incapaz de
perceber os crentes na sua dramática luta de todos os dias, na sua fragilidade
face à perseguição, na sua dificuldade em vencer o confronto com o egoísmo, a
acomodação, a preguiça, a monotonia… Ele próprio foi submetido à mesma prova,
conheceu a mordedura das mesmas tentações, experimentou as mesmas dificuldades.
No entanto, Ele soube sempre manter-Se fiel a Deus e aos seus projectos,
mostrando-nos que também nós podemos viver na fidelidade a Deus e às suas
propostas (vers. 15).
Nós, os seguidores de Jesus, não estamos
numa situação desesperada, apesar das nossas falhas e incoerências. Podemos e
devemos aceitar a proposta de Jesus e dirigir-nos a Deus, na certeza de que
seremos acolhidos por Ele como filhos muito amados. Graças a Jesus, o
sumo-sacerdote que veio ao nosso encontro, que experimentou e entendeu a nossa
fragilidade, que restabeleceu a comunhão entre nós e Deus, que nos leva ao
encontro de Deus e que nos garante a sua misericórdia, estamos agora numa nova
situação de graça e de liberdade. Podemos, com tranquilidade e confiança, sem
qualquer medo, aproximar-nos desse “trono da graça” de onde brota a vida eterna
e verdadeira. Esta certeza deve ajudar-nos e dar-nos esperança nos momentos
mais dramáticos da nossa caminhada pela história (vers. 16).
ACTUALIZAÇÃO
• Em total consonância com as outras
leituras deste domingo, o autor da Carta aos Hebreus fala-nos de um Deus que
ama o homem com um amor sem limites e que, por isso, está disposto a assumir a
fragilidade dos homens, a descer ao seu nível, a partilhar a sua condição. Ele
não se esconde atrás do seu poder, da sua autoridade, da sua importância, da
sua omnipotência; Ele não tem medo de perder a sua dignidade ou as suas
prerrogativas divinas quando assume a pobreza, a fragilidade, a debilidade dos
homens… Na lógica de Deus, o que é mais importante não é aquele que protege a
sua autoridade e a sua importância através de barreiras intransponíveis, mas é
aquele que é capaz de descer ao encontro dos últimos, dos desclassificados, dos
marginalizados, dos sofredores, para lhes oferecer o seu amor. É esta a lógica
de Deus – lógica que somos chamados a compreender, a assumir e a testemunhar.
• Os seguidores de Cristo são, naturalmente,
convidados, a assumir o seu exemplo… Assim como Cristo, por amor, vestiu a
nossa fragilidade e veio ao nosso encontro, também nós devemos – despindo-nos
do nosso egoísmo, da nossa acomodação, da nossa preguiça, da nossa indiferença
– ir ao encontro dos nossos irmãos, vestir as suas dores e fragilidades,
fazer-nos solidários com eles, partilhar os seus dramas, lágrimas, sofrimentos,
alegrias e esperanças. Não podemos, do alto da nossa situação cómoda, limpa,
arrumada, decidir que não temos nada a ver com o sofrimento do mundo ou com a
carência que aflige a vida de um nosso irmão. Somos sempre responsáveis pelos
irmãos que connosco partilham os caminhos deste mundo, mesmo quando não os
conhecemos pessoalmente ou mesmo que deles estejamos separados por fronteiras
geográficas, históricas, étnicas ou outras.
• Ao assegurar-nos que nada temos a
temer pois Deus ama-nos, quer integrar-nos na sua família e oferecer-nos vida
em abundância, o nosso texto convida-nos a encarar a vida e os seus caminhos
com serenidade e confiança. Os cristãos são pessoas serenas e com o coração em
paz. Estão conscientes de que as suas fragilidades e debilidades não os
afastam, nunca, de Deus e do seu amor.
ALELUIA – Mc 10,45
Aleluia. Aleluia.
O Filho do homem veio para servir
e dar a vida pela redenção de todos.
EVANGELHO – Mc 10,35-45
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo
segundo São Marcos
Naquele tempo,
Tiago e João, filhos de Zebedeu,
aproximaram-se de Jesus e disseram-Lhe:
«Mestre, nós queremos que nos faças o
que Te vamos pedir».
Jesus respondeu-lhes:
«Que quereis que vos faça?»
Eles responderam:
«Concede-nos que, na tua glória,
nos sentemos um à tua direita e outro à
tua esquerda».
Disse-lhes Jesus:
«Não sabeis o que pedis.
Podeis beber o cálice que Eu vou beber
e receber o baptismo com que Eu vou ser
baptizado?»
Eles responderam-Lhe: «Podemos».
Então Jesus disse-lhes:
«Bebereis o cálice que Eu vou beber
e sereis baptizados com o baptismo
com que Eu vou ser baptizado.
Mas sentar-se à minha direita ou à minha
esquerda
não Me pertence a Mim concedê-lo;
é para aqueles a quem está reservado».
Os outros dez, ouvindo isto,
começaram a indignar-se contra Tiago e
João.
Jesus chamou-os e disse-lhes:
«Sabeis que os que são considerados como
chefes das nações
exercem domínio sobre elas
e os grandes fazem sentir sobre elas o
seu poder.
Não deve ser assim entre vós:
Quem entre vós quiser tornar-se grande,
será vosso servo,
e quem quiser entre vós ser o primeiro,
será escravo de todos;
porque o Filho do homem não veio para
ser servido,
mas para servir
e dar a vida pela redenção de todos».
AMBIENTE
Continuamos a percorrer, com Jesus e com
os discípulos, o caminho para Jerusalém. Marcos observa que, nesta fase, Jesus
vai à frente e os discípulos seguem-n’O “cheios de temor” (cf. Mc 10,32).
Haverá aqui alguma má vontade dos discípulos, por causa das últimas polémicas e
das exigências radicais de Jesus? Este “temor” resultará do facto de Jesus se
aproximar do seu destino final, em Jerusalém, destino que o grupo não aprova?
Seja como for, Jesus continua a sua catequese e, mais uma vez (é a terceira, no
curto espaço de poucos dias), lembra aos discípulos que, em Jerusalém, vai ser
entregue nas mãos dos líderes judaicos e vai cumprir o seu destino de cruz (cf.
Mc 10,33-34). Desta vez, não há qualquer reacção dos discípulos.
Já observámos, no passado domingo, que o
caminho percorrido por Jesus e pelos discípulos é, além de um caminho
geográfico, também um caminho espiritual. Durante esse caminho, Jesus vai
completando a sua catequese aos discípulos sobre as exigências do Reino e as
condições para integrar a comunidade messiânica. A resposta dos discípulos às
propostas que Jesus lhes vai fazendo nunca é demasiado entusiasta.
O texto que nos é proposto desta vez
demonstra que os discípulos continuam sem perceber – ou sem querer perceber – a
lógica do Reino. Eles ainda continuam a raciocinar em termos de poder, de
autoridade, de grandeza e vêem na proposta do Reino apenas uma oportunidade de
realizar os seus sonhos humanos.
MENSAGEM
Na primeira parte do nosso texto (vers.
35-40), apresenta-se a pretensão de Tiago e de João, os filhos de Zebedeu, no
sentido de se sentarem, no Reino que vai ser instaurado, “um à direita e outro
à esquerda” de Jesus. A questão nem sequer é apresentada como um pedido
respeitoso; mas parece mais uma reivindicação de quem se sente com direito
inquestionável a um privilégio. Certamente Tiago e João imaginam o Reino que
Jesus veio propor de acordo com Dn 7,13-14 e querem assegurar nesse Reino
poderoso e glorioso, desde logo, lugares de honra ao lado de Jesus. O facto
mostra como Tiago e João, mesmo depois de toda a catequese que receberam
durante o caminho para Jerusalém, ainda não entenderam nada da lógica do Reino
e ainda continuam a reflectir e a sentir de acordo com a lógica do mundo. Para
eles, o que é importante é a realização dos seus sonhos pessoais de autoridade,
de poder e de grandeza.
Uma vez mais Jesus vê-se obrigado a
esclarecer as coisas. Em primeiro lugar, Jesus avisa os discípulos de que, para
se sentarem à mesa do Reino, devem estar dispostos a “beber o cálice” que Ele
vai beber e a “receber o baptismo” que Ele vai receber. O “cálice” indica, no
contexto bíblico, o destino de uma pessoa; ora, “beber o mesmo cálice” de Jesus
significa partilhar esse destino de entrega e de dom da vida que Jesus vai
cumprir. O “receber o mesmo baptismo” evoca a participação e imersão na paixão
e morte de Jesus (cf. Rom 6,3-4; Col 2,12). Para fazer parte da comunidade do
Reino é preciso, portanto, que os discípulos estejam dispostos a percorrer, com
Jesus, o caminho do sofrimento, da entrega, do dom da vida até à morte. Apesar
de Tiago e João manifestarem, com toda a sinceridade, a sua disponibilidade
para percorrer o caminho do dom da vida, Jesus não lhes garante uma resposta
positiva à sua pretensão… Jesus evita associar o cumprimento da missão e a
recompensa, pois o discípulo não pode seguir determinado caminho ou embarcar em
determinado projecto por cálculo ou por interesse; de acordo com a lógica do
Reino, o discípulo é chamado a seguir Jesus com total gratuidade, sem esperar
nada em troca, acolhendo sempre como graças não merecidas os dons de Deus.
Na segunda parte do nosso texto (vers.
41-45), temos a reacção dos discípulos à pretensão dos dois irmãos e uma catequese
de Jesus sobre o serviço.
A reacção indignada dos outros
discípulos ao pedido de Tiago e de João indica que todos eles tinham as mesmas
pretensões. O pedido de Tiago e de João a Jesus aparece-lhes, portanto, como
uma “jogada de antecipação” que ameaça as secretas ambições que todos eles
guardavam no coração.
Jesus aproveita a circunstância para
reiterar o seu ensinamento e para reafirmar a lógica do Reino. Começa por
recordar-lhes o modelo dos “governantes das nações” e dos grandes do mundo
(vers. 42): eles afirmam a sua autoridade absoluta, dominam os povos pela força
e submetem-nos, exigem honras, privilégios e títulos, promovem-se à custa da
comunidade, exercem o poder de uma forma arbitrária… Ora, este esquema não pode
servir de modelo para a comunidade do Reino. A comunidade do Reino assenta
sobre a lei do amor e do serviço. Os seus membros devem sentir-se “servos” dos
irmãos, apostados em servir com humildade e simplicidade, sem qualquer
pretensão de mandar ou de dominar. Mesmo aqueles que são designados para
presidir à comunidade devem exercer a sua autoridade num verdadeiro espírito de
serviço, sentindo-se servos de todos. Excluindo do seu universo qualquer
ambição de poder e de domínio, os membros da comunidade do Reino darão
testemunho de um mundo novo, regido por novos valores; e ensinarão os homens
que com eles se cruzarem nos caminhos da vida a serem verdadeiramente livres e
felizes.
Como modelo desta nova atitude, Jesus
propõe-Se a Si próprio: Ele apresenta-Se como “o Filho do Homem que não veio
para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por todos” (vers.
45). De facto, toda a vida de Jesus pode ser entendida em chave de amor e
serviço. Desde o primeiro instante da incarnação, até ao último momento da sua
caminhada nesta terra, Ele pôs-se ao serviço do projecto do Pai e fez da sua
vida um dom de amor aos homens. Ele nunca Se deixou seduzir por projectos
pessoais de ambição, de poder, de domínio; mas apenas quis entregar toda a sua
vida ao serviço dos homens, a fim de que os homens pudessem encontrar a vida
plena e verdadeira.
O fruto da entrega de Jesus é o
“resgate” (“lytron”) da humanidade. A palavra aqui usada indica o “preço” pago
para resgatar um escravo ou um prisioneiro. Atendendo ao contexto, devemos
pensar que o resgate diz respeito à situação de escravidão e de opressão a que
a humanidade está submetida. Ao dar a sua vida (até à última gota de sangue)
para propor um mundo livre da ambição, do egoísmo, do poder que escraviza,
Jesus pagou o “preço” da nossa libertação. Com Ele e por Ele nasce, portanto,
uma comunidade de “servos”, que são testemunhas no mundo de uma ordem nova – a
ordem do Reino.
ACTUALIZAÇÃO
• No centro deste episódio está Jesus e
o modelo que Ele propõe, com o exemplo da sua vida. A frase “o Filho do Homem
não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por todos”
(Mc 10,45) resume admiravelmente a existência humana de Jesus… Desde o primeiro
instante, Ele recusou as tentações da ambição, do poder, da grandeza, dos
aplausos das multidões; desde o primeiro instante, Ele fez da sua vida um
serviço aos pobres, aos desclassificados, aos pecadores, aos marginalizados,
aos últimos. O ponto culminante dessa vida de doação e de serviço foi a morte
na cruz – expressão máxima e total do seu amor aos homens. É preciso que
tenhamos a consciência de que este valor do serviço não é um elemento acidental
ou acessório, mas um elemento essencial na vida e na proposta de Jesus… Ele
veio ao mundo para servir e colocou o serviço simples e humilde no centro da
sua vida e do seu projecto. Trata-se de algo que não pode ser ignorado e que
tem de estar no centro da experiência cristã. Nós, seguidores de Jesus, devemos
estar plenamente conscientes desta realidade.
• O episódio que nos é hoje proposto
como Evangelho mostra, contudo, a dificuldade que os discípulos têm em entender
e acolher a proposta de Jesus. Para Tiago, para João e para os outros
discípulos, o que parece contar é a satisfação dos próprios sonhos pessoais de
grandeza, de ambição, de poder, de domínio. Não os preocupa fazer da vida um
serviço simples e humilde a Deus e aos irmãos; preocupa-os ocupar os primeiros
lugares, os lugares de honra… Jesus, de forma simples e directa, avisa-os de
que a comunidade do Reino não pode funcionar segundo os modelos do mundo. Aqui
não há meio-termo: quem não for capaz de renunciar aos esquemas de egoísmo, de
ambição, de domínio, para fazer da própria vida um serviço e um dom de amor,
não pode ser discípulo desse Jesus que veio para servir e para dar a vida.
• Ao apresentar as coisas desta forma, o
nosso texto convida-nos a repensar a nossa forma de nos situarmos, quer na
família, quer na escola, quer no trabalho, quer na sociedade. A instrução de
Jesus aos discípulos que o Evangelho deste domingo nos apresenta é uma denúncia
dos jogos de poder, das tentativas de domínio sobre aqueles que vivem e
caminham a nosso lado, dos sonhos de grandeza, das manobras patéticas para
conquistar honras e privilégios, da ânsia de protagonismo, da busca desenfreada
de títulos, da caça às posições de prestígio… O cristão tem, absolutamente, de
dar testemunho de uma ordem nova no seu espaço familiar, colocando-se numa
atitude de serviço e não numa atitude de imposição e de exigência; o cristão
tem de dar testemunho de uma nova ordem no seu espaço laboral, evitando
qualquer atitude de injustiça ou de prepotência sobre aqueles que dirige e
coordena; o cristão tem sempre de encarar a autoridade que lhe é confiada como
um serviço, cumprido na busca atenta e coerente do bem comum…
• Na comunidade cristã encontramos
também, com muita frequência, a tentação de nos organizarmos de acordo com
princípios de poder, de autoridade, de predomínio, à boa maneira do mundo.
Sabemos, pela história, que sempre que a Igreja tentou esses caminhos,
afastou-se da sua missão, deu um testemunho pouco credível e tornou-se
escândalo para tantos homens e mulheres bem intencionados… Por outro lado,
testemunhamos todos os dias, nas nossas comunidades cristãs, como os
comportamentos prepotentes criam divisões, rancores, invejas, afastamentos… Que
não restem dúvidas: a autoridade que não é amor e serviço é incompatível com a
dinâmica do Reino. Nós, os seguidores de Jesus, não podemos, de forma alguma,
pactuar com a lógica do mundo; e uma Igreja que se organiza e estrutura tendo
em conta os esquemas do mundo não é a Igreja de Jesus.
• Na nossa sociedade, os primeiros são
os que têm dinheiro, os que têm poder, os que frequentam as festas badaladas
nas revistas da sociedade, os que vestem segundo as exigências da moda, os que
têm sucesso profissional, os que sabem colar-se aos valores politicamente
correctos… E na comunidade cristã? Quem são os primeiros? As palavras de Jesus
não deixam qualquer dúvida: “quem quiser ser o primeiro, será o último de todos
e o servo de todos”. Na comunidade cristã, a única grandeza é a grandeza de
quem, com humildade e simplicidade, faz da própria vida um serviço aos irmãos.
Na comunidade cristã não há donos, nem grupos privilegiados, nem pessoas mais
importantes do que as outras, nem distinções baseadas no dinheiro, na beleza,
na cultura, na posição social… Na comunidade cristã há irmãos iguais, a quem a
comunidade confia serviços diversos em vista do bem de todos. Aquilo que nos
deve mover é a vontade de servir, de partilhar com os irmãos os dons que Deus
nos concedeu.
• A atitude de serviço que Jesus pede
aos seus discípulos deve manifestar-se, de forma especial, no acolhimento dos
pobres, dos débeis, dos humildes, dos marginalizados, dos sem direitos,
daqueles que não nos trazem o reconhecimento público, daqueles que não podem
retribuir-nos… Seremos capazes de acolher e de amar os que levam uma vida pouco
exemplar, os marginalizados, os estrangeiros, os doentes incuráveis, os idosos,
os difíceis, os que ninguém quer e ninguém ama?
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 29º
DOMINGO DO TEMPO COMUM
(adaptadas de “Signes d’aujourd’hui”)
1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA
SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao
29º Domingo do Tempo Comum, procurar meditar a Palavra de Deus deste domingo.
Meditá-la pessoalmente, uma leitura em cada dia, por exemplo… Escolher um dia
da semana para a meditação comunitária da Palavra: num grupo da paróquia, num
grupo de padres, num grupo de movimentos eclesiais, numa comunidade religiosa…
Aproveitar, sobretudo, a semana para viver em pleno a Palavra de Deus.
2. BILHETE DE EVANGELHO.
É normal que toda a pessoa procure ser
reconhecida; a sua dignidade depende disso. Mas será necessário, para ser
reconhecido, procurar passar à frente dos outros, sem qualquer escrúpulo? Que
cada um tome o seu lugar, mas não reclame o primeiro. Jesus não vem dar
conselhos, começa por oferecer o seu testemunho. Ele, que era de condição
divina, tomou o lugar de escravo. Deus elevou-O e deu-Lhe um Nome que
ultrapassa todo o nome. Jesus não prega o abaixamento pelo abaixamento. Quem
escolhe o serviço é elevado por Deus ao lugar de “grande”, Deus dá o primeiro
lugar a quem escolheu o último. É Deus que altera as situações que o homem, na
sua liberdade, escolhe para ser verdadeiro cidadão do Reino de Deus.
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
A tentação dos discípulos é recorrente:
quem é o maior? Eles pedem a Jesus para se sentarem um à direita e outro à
esquerda na sua glória! A glória de Jesus, para Tiago e João, só podia ser a
glória temporal do Messias. Eles pedem-Lhe para lhes dar os melhores
ministérios no futuro governo! Mas Jesus pensa noutra glória: o cálice da
Paixão, depois de ter mergulhado no baptismo da sua morte. É evidente que os
dois discípulos não podiam compreender isso. O trono de Jesus é a sua cruz. Na
cruz raiará em supremo grau o amor do Pai por todos os homens. Na cruz, Jesus
está rodeado por dois ladrões, um à direita e outro à esquerda. Eles simbolizam
a humanidade, ao mesmo tempo mergulhada nas trevas e acolhedora da luz. É toda
a humanidade que é chamada a entrar no Reino, a partilhar a glória do Rei: a
parte da humanidade que reconhece Jesus e a parte que O rejeita. Deus quer que
todos os homens se salvem. Jesus cumpriu perfeitamente a vontade do seu Pai:
veio para servir e dar a vida pela humanidade! Cabe aos discípulos, a nós
também seus discípulos, serem também servidores da salvação para todos os
homens!
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Como servir? Este Dia Mundial das
Missões recorda-nos a nossa vocação a sermos servidores do Evangelho…
Concretamente, como fazer passar o Evangelho antes dos nossos próprios desejos?
Fazer passar o respeito pelo outro antes da nossa própria vantagem? De que
maneira vamos poder servir nesta semana? Ousaremos fazê-lo em nome de Cristo
Servidor?
Como rezar? Isso diz respeito também à
qualidade da nossa oração… A maior parte das vezes, somos como os filhos de
Zebedeu: prontos a pedir. Mas se nos esforçamos por amar e servir como Cristo
nos pede, então, melhor que pedir, poderemos oferecer-Lhe aquilo que, graças a
Ele, faremos pelos nossos irmãos.
UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
PROPOSTA PARA
ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A
PALAVRA NAS COMUNIDADES DEHONIANAS
Grupo Dinamizador:
P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa,
P. José Ornelas Carvalho
Província Portuguesa dos Sacerdotes do
Coração de Jesus (Dehonianos)
Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA
– Portugal
Tel. 218540900 – F8758ax: 218540909
Roteiro
Homilético 3 - Liturgia: Vida Pastoral
Por Celso Loraschi
A oferta da vida como ação sagrada
Introdução geral
Os textos bíblicos da liturgia deste
domingo apresentam o “servo de Deus” que entrega livremente a sua vida como
sacrifício expiatório. A etimologia da palavra “sacrifício” indica uma “ação
sagrada”, relacionada, portanto, com a realização da vontade divina. O “servo
de Deus”, para o profeta Isaías Segundo, é o povo de Israel exilado na
Babilônia. No meio do sofrimento, esse “servo” descobre a missão divina de
levar sobre si as dores e transgressões de muitos e não somente de suas
próprias faltas. Por meio do seu povo sofredor, Deus realiza seu desígnio de
salvação para muitos outros povos (I leitura). As comunidades cristãs veem
nesses textos a prefiguração de Jesus, o “servo sofredor” que veio ao mundo
“não para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”,
como exprime o Evangelho de Marcos. Os discípulos devem tomar consciência de que
seguem um Messias antitriunfalista e, por isso, devem renunciar a toda ambição
de poder e tornar-se servos uns dos outros (evangelho). Pela entrega de sua
vida como sacrifício expiatório, Jesus tornou-se o único e eterno sacerdote,
capaz de compadecer-se de nossas fraquezas, pois se fez solidário conosco em
tudo, menos no pecado (II leitura). Podemos nos aproximar dele com toda a
confiança, pois é fonte de eterna misericórdia e de abundantes graças.
Comentário dos textos bíblicos
I leitura (Is 53,10-11): O sofrimento
solidário
Esse pequeno texto de Isaías Segundo faz
parte do quarto cântico do servo de Deus (52,13-53,12). Os autores elaboram
nova teologia à luz da realidade dos exilados na Babilônia. Revelam o
significado do sofrimento pelo qual passam os oprimidos. Deus os assumiu como o
seu servo amado e deu-lhes uma missão muito especial. Todos vão testemunhar a
incrível transformação pela qual Deus faz passar o seu “servo sofredor”. Até os
opressores são obrigados a reconhecer. Eles diziam a respeito do servo: “Não
tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso olhar, nem formosura
capaz de nos deleitar. Era desprezado e abandonado […], familiarizado com o
sofrimento, como pessoa de quem todos escondem o rosto […]; não fazíamos caso
nenhum dele. Nós o tínhamos como vítima do castigo, ferido por Deus e humilhado
[…]”. Porém, esses mesmos vão exclamar admirados: “No entanto, eram nossos
sofrimentos que ele levava sobre si, eram nossas dores que ele carregava”
(53,2-4).
A palavra profética ilumina o sentido
que está por trás dos acontecimentos. Deus se revela de modo surpreendente em
cada contexto histórico. Quem poderia imaginar que um punhado de gente
desprezada e abandonada se transformaria em sujeitos de redenção para muitos,
até mesmo para seus opressores que se convertem? É da vontade divina que os
pequeninos se tornem veículos de sua graça para o mundo. Essa consciência que
vai crescendo no meio dos exilados, com a animação da profecia, enche-os de
coragem e esperança. O sofrimento passa a ser concebido já não como castigo
divino, mas como desdobramento da atitude de fidelidade à vontade divina. A
pessoa justa sofre porque segue os desígnios de Deus e, assim, se contrapõe aos
planos dos dominantes. Em vez de fazer o jogo dos vingativos e violentos,
assume sobre si as transgressões e dores do povo. Livre e conscientemente,
oferece sua vida em resgate da justiça para todos.
A atitude de fidelidade a Deus com todas
as consequências faz do “servo sofredor” um vitorioso sobre a maldade do mundo.
Não só isso. Porque ele oferece a sua vida como sacrifício expiatório,
garantirá o triunfo do plano de Deus, que é a vida em plenitude para todos.
Evangelho (Mc 10,35-45): Jesus, o servo
sofredor
As comunidades cristãs primitivas
enfrentaram, como acontece nas comunidades de hoje, diversos conflitos
internos. Um deles referia-se à disputa de poder entre as lideranças.
Competições, ciúme e inveja se manifestam também entre os cristãos. São
manifestações que contradizem o ensinamento e a prática de Jesus. Por isso, um
dos objetivos do Evangelho de Marcos é “voltar às fontes” originais da fé em
Jesus Cristo. Seus autores procuram recuperar a memória de Jesus de Nazaré a
fim de que os cristãos permaneçam fiéis ao seu projeto e não se deixem
contaminar pela ideologia de poder. Já se passaram aproximadamente 40 anos após
a morte e ressurreição de Jesus. A maioria das testemunhas oculares de Jesus
histórico já morreu. A segunda geração de cristãos, diante dos novos desafios,
necessita de orientações sólidas. Para isso, nada melhor do que ver e ouvir de
novo o que Jesus fez e disse.
O Evangelho de Marcos concebe a viagem
de Jesus com seus discípulos – da Galileia até Jerusalém (8,22-10,52) – como um
caminho pedagógico. Nessa viagem, Jesus se preocupa, de maneira especial, em
abrir os olhos dos discípulos para que compreendam que tipo de Messias ele é.
Não basta confessar publicamente que Jesus é o Cristo, como fez Pedro em nome
de todos (8,29). É necessário superar a ideia de que o Messias seria um líder
poderoso prestes a manifestar domínio e glória. De fato, o episódio
imediatamente anterior ao texto deste domingo revela que os discípulos carregam
a pretensão de tirar proveito do poder que Jesus conquistaria ao entrar na
capital. Tiago e João lhe pedem encarecidamente que sejam distinguidos dos
demais e possam sentar um à direita e outro à esquerda de Jesus em sua glória.
Os demais discípulos ficam indignados com os dois, numa demonstração de divisão
interna pela disputa de poder. Jesus os chama e, com paciência e misericórdia,
mostra as atitudes que devem ser renunciadas e as que devem ser praticadas
pelos seus verdadeiros seguidores.
Há um jeito de ser que caracteriza os
cristãos, totalmente diferente do adotado pelos grandes e importantes deste
mundo: enquanto estes dominam as nações, os discípulos devem fazer o contrário:
“Aquele que quiser ser grande seja o vosso servidor, e aquele que quiser ser o
primeiro dentre vós seja o servo de todos”. Os critérios de Jesus subvertem os
valores apregoados pela ideologia oficial. Seus critérios são os do reino de
Deus. Somente pelo serviço abnegado de uns aos outros é que se estabelecem as
relações sociais de justiça, paz e fraternidade.
Os discípulos ainda não conseguem captar
o sentido das palavras de Jesus. Não conseguem imaginar um Messias sem honra e
sem privilégios. Como poderiam seguir um sujeito que escolhe ser servo quando
poderia ser rei? Jesus não desiste: nessa caminhada pedagógica, anuncia por
três vezes que o Messias deverá sofrer e ser morto; adverte-os de que, para
segui-lo, é necessário carregar a cruz. Seus ensinamentos são autenticados pelo
testemunho concreto de sua vida: “O Filho do homem não veio para ser servido,
mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”. Constata-se aqui
íntima relação com o “servo sofredor” do profeta Isaías Segundo, conforme a
primeira leitura da liturgia deste domingo. Jesus assume sua missão de
fidelidade ao plano de salvação de Deus, entregando livremente sua vida.
Abandonado e desprezado até pelos seus discípulos, doa-se por inteiro como
vítima expiatória. Ele nos resgatou da morte para a vida.
As comunidades de Marcos e as
comunidades de hoje são convidadas a analisar suas relações internas à luz do
ensinamento e do testemunho de Jesus. Não há argumentos que possam justificar
atitudes de superioridade de uns sobre os outros. As funções ou cargos
necessários para dinamizar a evangelização não podem ser usados para benefícios
e privilégios pessoais. No seguimento de Jesus não há lugar para “grandes”, e
sim para “servidores”; não há lugar para “primeiros”, e sim para “servos de
todos”.
II leitura (Hb 4,14-16): Jesus solidário
com nossas fraquezas
O texto de Hebreus aprofunda o tema do
sacerdócio de Jesus Cristo. Os interlocutores certamente conhecem o sistema
sacerdotal do judaísmo, em que o sumo sacerdote exercia a função de mediador
entre Deus e a comunidade, entrando uma vez por ano no Santo dos Santos (o
lugar mais sagrado do templo de Jerusalém) para realizar o rito de purificação
dos pecados em nome de todo o povo. Agora é Jesus o único mediador entre Deus e
a humanidade. Já não há necessidade de ofertas e sacrifícios nem no Templo nem
em qualquer outro lugar. Jesus mesmo se ofereceu em sacrifício, de uma vez por
todas, como expiação por todos os nossos pecados. Ele veio inaugurar a nova e
definitiva aliança.
Com sua ascensão, Jesus atravessou os
céus e encontra-se junto de Deus Pai, onde exerce o seu sacerdócio eterno em
favor de toda a humanidade. Tendo assumido a condição humana, experimentou no
próprio corpo os limites e fraquezas inerentes a cada pessoa. Em tudo se fez
igual a nós, menos no pecado. Fez-se solidário com os nossos sofrimentos até a
morte. Foi incompreendido, perseguido, maltratado, abandonado e condenado como
um marginal desprezível. Como “servo sofredor”, carregou sobre si as dores da
humanidade, garantindo a redenção a todos, também aos que o crucificaram. Ora,
se Jesus foi tão radicalmente solidário com os seres humanos, cada um de nós
pode aproximar-se dele sem nenhum receio, com total confiança. Ele nos
compreende perfeitamente e sabe compadecer-se de nossas fraquezas. É a fonte de
graças e pleno de misericórdia. Seu sacerdócio é permanente e eficaz.
Os autores da carta aos Hebreus
transmitem às comunidades cristãs, formadas principalmente por judeus
convertidos, a convicção de que estão vivendo novo tempo. Por isso, mesmo em
situação de sofrimento, devem permanecer firmes na profissão de fé e
aproximar-se de Jesus com toda a confiança para receber a ajuda oportuna. Os
cristãos podem caminhar na certeza do amor sem limites de Deus, revelado no
sacrifício (= ação sagrada) expiatório de Jesus.
III. Pistas para reflexão
– Somos servos e servas de Deus. O povo
de Israel, no exílio da Babilônia, animado pela ação profética, descobre sua
vocação de ser “servo de Deus”. O sofrimento em que se encontra já não é motivo
de desânimo ou tristeza. Assumido livremente numa nova dimensão de fé, torna-se
o meio pelo qual o povo percebe a presença amorosa de Deus, que lhe oferece uma
missão especial: carregar as dores e as transgressões do mundo. Por meio do seu
“servo sofredor”, Deus irradia sua misericórdia e manifesta sua salvação a toda
a humanidade. Com base nessa “teologia do servo sofredor”, podemos refletir
sobre como Deus se revela hoje por meio das pessoas excluídas.
– Seguir Jesus com sinceridade. O
evangelho de hoje chama a atenção para as influências que as ideologias de
poder podem exercer sobre nós. Seguir Jesus é renunciar à busca de fama e de
prestígio e tornar-se servidor. Rompendo com toda forma de poder e assumindo a
condição de servo, Jesus nos resgatou para a vida e abriu o caminho para a
sociedade justa e fraterna. Nossa prática cotidiana corresponde ao testemunho
de Jesus?
– Jesus fez-se solidário conosco. Ele
conhece nossas fraquezas. Podemos contar sempre com sua misericórdia. Ele é o
único e eterno sacerdote que se oferece para que tenhamos vida em plenitude. A
carta aos Hebreus nos alerta: “Permaneçamos firmes na profissão de fé”. Podemos
caminhar com segurança nos passos de Jesus, oferecendo a nossa vida, com
liberdade e consciência, na prática do amor e da justiça.
Celso Loraschi
Mestre em Teologia Dogmática com
Concentração em Estudos Bíblicos pela Faculdade de Teologia Nossa Senhora da
Assunção, São Paulo, professor de Evangelhos Sinóticos e Atos dos Apóstolos na
Faculdade Católica de Santa Catarina (Facasc) e assessor do Cebi, SC. E-mail:
loraschi@facasc.edu.br
Roteiro
Homilético 4 - Liturgia: Dom Total
JESUS VEIO PARA SERVIR E DAR SUA VIDA
1ª leitura: (Is 53,10-11) 4º Canto do Servo de
Javé: vítima de expiação – Deus não segue a lógica dos homens. O justo esmagado
é que assume e resgata as faltas dos “muitos” (cf. evangelho). Por isso, Deus o
exalta. * Figura de Cristo (cf. evangelho).
2ª leitura: (Hb 4,14-16) Jesus, nosso
Sumo Sacerdote – Temos um pontífice que por nós entrou no Santuário (cf. ritual
do AT), mas também é capaz de compadecer-se de nossas fraquezas, conhecendo a
carência humana. Jesus leva nossa condição humana à santidade de Deus. Exortação:
1) fidelidade na confissão da fé (4,14); 2) confiança na misericórdia divina
(4,16). * 4,16 cf. Hb 7,25; 10,19; Rm 5,2; Cl 1,22.
Evangelho: (Mc 10,35-45 ou 10,42-45) Não
se deixar servir, mas servir – Mostra-se de modo flagrante a necessidade de
instrução dos discípulos: pedem para ocupar os primeiros lugares no Reino.
Jesus rejeita o pedido e pede seguimento (“beber seu cálice e ser batizado com
seu batismo”); sem compreender, eles o prometem. Então, Jesus ensina: em vez de
ambição, serviço; o serviço de Jesus vai até à morte “em resgate dos muitos”
(cf. Servo de Javé, 1ª leitura). * 10,35-40 cf.
Mt 20,20-23; Jo 18,11; Lc 12,50 * 10,41-45 cf. Mt 20,24-28; Lc 22,24-27; Is
53,10-12; Rm 3,23-25; Mc 14,24.
***
*** ***
Podemos gostar de crucifixos de marfim, com
gotas de sangue em rubis, como era a moda nas mansões coloniais do século
XVIII. Mas não gostamos de um homem diminuído, quebrado, mutilado, ofensa à
humanidade. Ora, Deus gosta – não por sadismo (como se tivesse necessidade de
castigar alguém), mas por verdadeiro amor, que é comunhão, pois se reconhece no
justo que foi esmagado por causa da justiça. Num só justo assim, Deus mesmo
assume a dívida de muitos, de todos. Os judeus aprenderam isso no exílio
babilônico. Não se sabe quem foi o justo torturado pelos ímpios, do qual fala
Is 52,13–53,12 (1ª leitura), mas sabemos o que Israel dele aprendeu: enquanto
diante dele cobriam o rosto, aprenderam que ele carregou os pecados do povo e
morreu por eles.
Como é possível isso? “Chorarão sobre
aquele que traspassaram” (Zc 12,10). Parece que a humanidade precisa ver em
alguém o resultado de sua malícia, para dela se arrepender. As reivindicações
sociais só são concedidas depois de algumas (ou muitas) mortes. Os movimentos
de emancipação só vencem quando há mártires. Infeliz humanidade, que só aprende
de suas vítimas. Por isso é que Deus ama os que são vitimados. Não porque goste
de vingança e sangue, mas porque eles são os seus melhores profetas, seus
porta-vozes. Ele se identifica com eles, exalta-os, inclusive, na própria
veneração do povo, que, venerando-os, se arrepende de suas faltas e por eles é
perdoado e verdadeiramente libertado. Deus ama duplamente o justo sacrificado:
a primeira vez, por ser justo e testemunhar a justiça; a segunda, porque seu sangue
leva os outros à justiça.
O justo padecente é o modelo conforme o
qual Jesus concebe sua missão (evangelho). Entretanto, os seus melhores
discípulos pretendem reservar para si os lugares de honra no Reino (Mt 19,16ss
abranda a situação, dizendo que foi a mãe deles que o pediu...). Jesus então
lhes ensina que tais pretensões cabem aos poderosos deste mundo, mas não têm
vez no Reino de Deus. No Reino de Deus se deve beber o cálice de Jesus, receber
o batismo que ele recebe – e os discípulos, sem entender o que Jesus quer
dizer, confirmam que eles farão isso. Como, de fato, o fizeram, depois que o
exemplo de Jesus lhes ensinara o que estas figuras significavam.
O “poder” no Reino de Deus consiste no
servir. O amor só tem poder enquanto ele é doado e se coloca a serviço. Para
atingir o coração (e a Deus interessa só isso) é preciso penetrar até o nível
da liberdade da pessoa. Ninguém ama por constrangimento. A liberdade surge
quando alguém pode tomar ou não tomar determinada decisão. Diante da força que
se impõe, não há liberdade. Diante do serviço de alguém que se torna submisso a
mim, posso decidir alguma coisa. Por isso, Jesus quer estar a serviço, para que
se possa livremente decidir que “reino” se prefere.
Servir é ser pequeno. Ministro (servo)
tem a ver com mínimo. Em face ao pequeno, o homem revela o que tem no seu
coração: bondade ou sede de poder. Jesus quis ser pequeno, para que os corações
se revelassem, não tanto a ele e Deus, que os conhece, mas a si mesmos, pois o
maior desconhecido para mim é meu próprio coração. Assumindo o caminho do
paciente testemunho da verdade, divergente das conveniências da sociedade
dominante, Jesus se tornou servo e fraco, sempre exposto e sem defesa.
Tornou-se cordeiro (cf. Is 53,7). O resultado só podia ser o que de fato
aconteceu. Foi eliminado, e até seus discípulos tiveram vergonha dele. Mas,
muito mais do que no caso do justo de Is 53, Jesus tornou-se “pedra de toque”
dos corações e da sociedade toda, com suas estruturas e tudo.
Esta é a mensagem que Mc nos deixa
entrever a partir do 3ª anúncio da Paixão (Mc 10,32-34; estes versículos
poderiam ser incluídos na leitura, para mostrar melhor que as palavras sobre o
servir não são apenas uma crítica aos filhos de Zebedeu, mas uma interpretação
do caminho do Cristo).
A 2ª leitura cabe bem neste contexto
litúrgico. Embora a figura do sacerdote não seja exatamente a do Servo,
entendemos perfeitamente que é o Cristo-Servo que, pela fidelidade a sua
missão, se torna o verdadeiro “santificador”. Hb acentua que exatamente a
participação de Jesus nos mais profundos abismos da condição humana – exceto o
pecado – o qualifica para ser o melhor sacerdote imaginável. Um sacerdote que
não está do outro lado da barra, mas que participa conosco. E, num seguinte
passo, dirá ainda que este sacerdote não precisa de sacrifícios alheios à nossa
condição humana (portanto, meramente simbólicos), mas torna sua própria vida
instrumento de salvação.
A
GRANDE AMBIÇÃO: SERVIR E DAR A VIDA
O
evangelho de hoje é provocador. Os melhores alunos de Jesus solicitam uma coisa
totalmente contrária ao que ele tentou ensinar. Pedem para sentar nos lugares
de honra no seu reino, à sua direita e à sua esquerda. Não compreenderam nem a
pessoa, nem o modo de agir de Jesus. Seu pedido era tão vergonhoso que o
evangelista Mateus, quando contou mais tarde a mesma história, disse que foi a
mãe deles que pediu... (Mt 20,20).
Devemos situar esse episódio no seu
contexto. Mc 8,31–10,45 é a grande instrução de Jesus a caminho, balizada pelos
três anúncios da Paixão. O evangelho de hoje é a continuação do 3ª anúncio da
Paixão: estamos no fim da instrução, e parece que até os melhores alunos ainda
não aprenderam nada. De fato, só aprenderão depois da morte e ressurreição de
Jesus. Por enquanto, em contraste com a incompreensão dos alunos, eleva-se a
grandeza da lição final: o dom da própria vida.
A 1ª leitura prepara-nos para
compreender melhor o evangelho. É o 4º cântico do Servo Sofredor. No seu
sofrimento ele assumiu a culpa de muitos. Por isso, Deus o ama duplamente:
porque ele é justo e porque seu sangue leva os outros a serem justos.
Infelizmente a humanidade precisa de vítimas da injustiça para reencontrar o
caminho da justiça. A recente história da América Latina está cheia disso: os
mártires que com seu sangue testemunharam o caminho da fraternidade. E ao lado
desses mártires de sangue temos ainda os mártires do dia-a-dia, que não são
poucos: pessoas que sacrificam sua juventude para cuidar de pais idosos, que
sacrificam carreira lucrativa para se dedicar à educação dos pobres... São
estes que santificam nosso mundo cruel.
O justo que dá sua vida pelos outros é
chamado “servo”, porque serve. Ele é o antipoder. O povo diz: “Quem pode mais,
chora menos”. O Servo diria: “Quem pode mais, serve menos”. Jesus diria: “Quem
ama mais, sofre mais”. Jesus é a plena realização do “servo”. Aos apóstolos
ambiciosos que desejam ter os primeiros lugares no Reino ele opõe seu próprio
exemplo: “Quem quiser ser o maior entre vós seja aquele que vos serve, e quem
quiser ser o primeiro entre vós seja o escravo de todos. O Filho do Homem não
veio para ser servido, mas para servir e dar a vida em resgate por muitos” (Mc
10,45).
Casualmente, este evangelho coincide com
o trecho de Hb lido na 2ª leitura. Aí o servo de Deus é chamado de sacerdote.
Não no sentido do Antigo Testamento – pois aí os sacerdotes eram muitos e
deveriam ser descendentes de Aarão, o que Jesus não era. Mas no sentido de
oferecer a Deus, por todos nós, a própria vida. Aliás, ele é o único sacerdote
conforme o Novo Testamento. Aqueles a quem chamamos de sacerdotes são na
realidade “ministros”, servos do sacrifício exercido por Jesus. Eles ministram
no altar o sacrifício de Jesus, exercendo o sacerdócio ministerial. E os fiéis
unem-se ao dom da vida Jesus exercendo na vida cotidiana o sacerdócio batismal
do povo de Deus.
(O Roteiro Homilético é elaborado pelo Pe.
Johan Konings SJ – Teólogo, doutor em exegese bíblica, Professor da FAJE. Autor
do livro "Liturgia Dominical", Vozes, Petrópolis, 2003. Entre outras
obras, coordenou a tradução da "Bíblia Ecumênica" – TEB e a tradução
da "Bíblia Sagrada" – CNBB. Konings é Colunista do Dom Total. A
produção do Roteiro Homilético é de responsabilidade direta do Pe. Jaldemir Vitório
SJ, Reitor e Professor da FAJE.)
Roteiro
Homilético 5 - Liturgia: Dom Henrique
Comecemos observando o evangelho.
Notemos como os dois irmãos, Tiago e João, se dirigem a Jesus: “Queremos que
faças o que vamos pedir”. Isto não é modo de pedir nada ao Senhor, isto não é
modo de rezar! Aqui não há humildade, não há abertura para procurar a vontade
do Senhor a nosso respeito, mas somente o interesse cego de realizar nossa
vontade! Quanta loucura e presunção! Muitas vezes, é assim também que rezamos,
com esse tom, com essa atitude! Recordemos a palavra do Apóstolo: “Não sabemos
o que pedir como convém” (Rm 8,26). Somos tão frágeis, tão incapazes de
compreender os desígnios de Deus, que nossos pedidos muitas e muitas vezes não
são segundo o coração do Senhor e, portanto, não são para o nosso bem!
Como, então, pedir de acordo com a
vontade do Senhor? Escutemos ainda São Paulo: “O Espírito socorre a nossa
fraqueza. O próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis” (Rm
8,26). Eis! É somente quando nos deixamos guiar pelo Santo Espírito do Cristo,
que compreendemos as coisas de Deus e pediremos segundo Deus! Nunca
compreenderá o desígnio de Deus, quem não pede segundo Deus… e nunca pedirá
segundo Deus, quem não se deixa guiar pelo Espírito de Deus! Aqueles dois não
pediam segundo Deus, não suplicavam segundo o Reino, mas segundo seus
interesses: queriam glória, queriam honra, queriam os primeiros lugares,
queriam seus interesses, de acordo com sua lógica e modo de pensar!
A resposta de Jesus demonstra o seu
desgosto: “Vós não sabeis o que pedis!” E o Senhor completa com um desafio –
que é para os dois irmãos e para todos nós, caros irmãos e irmãs: “Podeis beber
o cálice que eu vou beber? Podeis ser batizados com o batismo com que vou ser
batizado?” De que cálice, de que batismo Jesus está falando? Do seu sofrimento,
do seu caminho de dor e humilhação, pelo qual ele entrará no Reino e o Reino
virá a nós: “O Senhor quis macerá-lo com sofrimentos. Oferecendo sua vida em
expiação, ele terá descendência duradoura e fará cumprir com êxito a vontade do
Senhor. Por esta vida de sofrimento, alcançará a luz e uma ciência perfeita.
Meu Servo, o justo, fará justos inúmeros homens, carregando sobre si suas
culpas”. Este é o caminho de Jesus: fazer-se servo humilde e causa de nossa
salvação. Isso os discípulos não compreendiam… nem nós compreendemos! Também a
nós o Senhor convida a participar do seu batismo e do seu cálice. Escutemos
mais uma vez, são Paulo: “Não sabeis que todos os que fomos batizados em Cristo
Jesus, é na sua morte que fomos batizados? Pelo batismo nós fomos sepultados
com ele na morte para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela
glória do Pai, assim também nós vivamos vida nova. Porque se nos tornamos uma
só coisa com ele por uma morte semelhante à sua, seremos uma coisa só com ele
também por uma ressurreição semelhante à sua” (Rm 6,3-5). Podeis ser batizados
no meu batismo? Estais dispostos a mergulhar vossa vida no meu caminho de morte
e ressurreição, morrendo para vós mesmos e buscando a vontade do Pai de todo o
coração? Eis o que é ser batizado em Cristo! E nós o fomos! O desafio agora é
viver o batismo no qual fomos batizados, tornando-nos, em Cristo, criaturas
novas, abertas para a vontade do Pai, como Jesus. E, não somente ser batizado
no batismo de Jesus, mas também beber o cálice de Jesus: “Todas as vezes que
comeis desse pão e bebeis desse cálice, anunciais a morte do Senhor até que ele
venha” (1Cor 11,26); “O cálice de bênção que abençoamos não é comunhão com o
sangue de Cristo?” (1Cor 10,16). Vejam só: comungar na eucaristia é aprofundar
aquilo que já começamos a viver no batismo: fazer da vida uma vida em comunhão
com o Senhor na sua morte e ressurreição! Não se pode nem sonhar em ser cristão
pensando num caminho diferente, num modo diverso de viver! Tiago e João não tinham
compreendido isso; os Doze também não compreenderam; nós, tampouco,
compreendemos!
Observem ainda como os dois irmãos são
presunçosos: quando Jesus pergunta: “Podeis beber o cálice? Podeis ser
batizados?” Eles respondem: “Podemos!” Na ânsia pelos primeiros lugares, no
desejo de obterem o que pedem, prometem aquilo que somente com a graça de Deus
seriam capazes de prometer! A mesma lógica nossa, nosso mesmo procedimento,
tantas vezes! Como Pedro, que, mais tarde dirá: “Darei a minha vida por ti” (Jo
13,37); e de modo tão presunçoso quanto o dos dois irmãos, exclamará: “Ainda
que todos se escandalizem, eu não o farei!” (Mc 14,29). Pobre Pedro, pobres
Tiago e João, pobres de nós! Sem a graça de Deus em Cristo, que poderemos?
Vamos nos escandalizar, vamos fugir da cruz, vamos descrer no Senhor, vamos
abandonar o caminho! Como não compreendemos a estrada de Jesus! Tudo é graça.
Por isso Jesus diz que, ainda que eles bebam o seu cálice e sejam mergulhados
no seu batismo, ainda assim, será graça de Deus conceder os primeiros lugares…
Não podemos cobrar nada de Deus: “É para aqueles a quem foi reservado!”
Finalmente, a atitude dos outros Doze,
que também buscavam o primeiro lugar e se revoltam contra os dois irmãos! E
Jesus chama os Doze e nos chama também a nós, e fala-nos do mundo, com seus
jogos de poder, sua ganância, sua hipocrisia e sua mentira… e nos diz: “Entre
vós, não deverá ser assim: quem quiser ser grande, seja vosso servo; quem
quiser ser o primeiro, seja o escravo de todos. Porque o Filho do Homem não
veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate para
muitos”. Aqui está o modelo do caminho cristão: o Cristo, totalmente abandonado
à vontade do Pai, totalmente disponível, totalmente pobre… Ele é o modelo de
como devemos viver entre nós e em relação ao Pai: no serviço mútuo, na
disponibilidade, na confiança no Pai, no abandono ao seu desígnio a nosso
respeito. Somente Jesus poderia rezar com toda a liberdade: “Pai, não o que eu
quero, mas o que tu queres!” (Mc 14,36).
Olhando nossa fraqueza, nossa pouca
disponibilidade, olhando quanto na vida buscamos nossos interesses e nossas
vantagens, não desanimemos! Sigamos o conselho do Autor da Carta aos Hebreus:
“Temos um Sumo-sacerdote eminente, que entrou no céu, Jesus, o Filho de Deus. Por
isso, permaneçamos firmes na fé que professamos! Temos um Sumo-sacerdote capaz
de se compadecer de nossas fraquezas, pis ele mesmo foi provado em tudo como
nós!” Confiemos no Senhor e supliquemos que ele converta o nosso coração,
dando-nos seus sentimentos, suas atitudes de doação, serviço e humildade, sua
confiança no Pai e, finalmente, a graça de participar daquela glória que no céu
ele tem com o Pai e o Espírito Santo. Amém.
D. Henrique Soares da Costa
Roteiro
Homilético 6 - Liturgia: Pe. Françoá Costa
Fraquezas, Conversão e Missão.
A Palavra de Deus deste Domingo (Mc
10,35-45) volta ao mistério da salvação que passa pela cruz. Um contraste!…
Enquanto Jesus anunciava, pela terceira vez, a sua paixão, os filhos de Zebedeu
pedem: “Concede-nos que, na Tua glória, nos sentemos, um à Tua direita e outro
à Tua esquerda”. O homem procura sempre fugir ao sofrimento e garantir, por
outro lado, as honras; Jesus, porém, desengana-o: quem quiser tomar parte na
Sua glória, terá que beber com Ele o cálice amargo do sofrimento: “podeis beber
o cálice que Eu vou beber?”
É admirável a humildade dos Apóstolos
que não dissimularam os seus momentos anteriores de fraqueza e de miséria, mas
as cantaram com sinceridade aos primeiros cristãos. Deus quis também que no
Evangelho ficasse notícia histórica daquelas primeiras fraquezas dos que seriam
colunas da Igreja. São as maravilhas que a graça de Deus opera nas almas! Nunca
devemos ser pessimistas ao considerar as nossas próprias misérias: “Tudo posso
naquele que me dá força” (Fl 4, 13).
Quando pedimos algo na oração devemos
estar dispostos a aceitar, acima de tudo, a vontade de Deus, ainda que não
coincida com os nossos desejos: “Sua Majestade sabe melhor o que nos convém;
não temos que aconselhá-Lo- sobre o que nos há de dar, pois pode com razão
dizer-nos que não sabemos o que pedimos” (Moradas, II, 8).
Como o discípulo diante do mestre, como
o menino junto da sua mãe, assim deve estar o cristão em todas as suas
ocupações diante de Cristo. O filho aprende a falar ouvindo a sua mãe,
esforçando-se por copiar as suas palavras; da mesma forma, vendo Jesus fazer e
agir, aprendemos a conduzir-nos como Ele. A vida cristã consiste na imitação da
Vida do Mestre, pois Ele se encarnou “deixando-vos o exemplo, para sigais os
seus passos” (1 Pd 2,21). São Paulo exortava os primeiros cristãos a imitarem o
Senhor com estas palavras: “Haja entre vós o mesmo sentir e pensar que no
Cristo Jesus” (Fl 2,5). Somos chamados à comunhão com Cristo, à santidade!
A nossa santidade não consiste tanto
numa imitação externa de Jesus, mas em permitir que o nosso ser mais profundo
se vá configurando com Cristo. “Despojai-vos do homem velho com todas as suas
obras e revesti-vos do homem novo…” (Cl 3,9), recomendava São Paulo aos
Colossenses.
Esta renovação diária significa
purificar constantemente os nossos costumes, corrigir-se dos defeitos humanos e
morais, suprimir o que não combina com a vida de Cristo…
Mas significa sobretudo procurar que os
nossos sentimentos sobre as pessoas, sobre as realidade criadas, sobre a
tribulação, se pareçam cada dia mais com
os que teve Jesus em circunstâncias semelhantes, de tal maneira que a nossa
vida seja, em certo sentido, um prolongamento da sua, pois Deus nos predestinou
para sermos conformes com a imagem do seu
Filho (Rm 8, 29).
Hoje é o Dia Mundial das Missões. Neste
ano de 2015, tem como pano de fundo o
Ano da Vida Consagrada, que serve de estímulo para a sua oração e reflexão. Na
verdade, entre a vida consagrada e a missão subsiste uma forte ligação, porque,
se todo o baptizado é chamado a dar testemunho do Senhor Jesus, anunciando a fé
que recebeu em dom, isto vale de modo particular para a pessoa consagrada. O
seguimento de Jesus, que motivou a aparição da vida consagrada na Igreja, é
reposta à chamada para se tomar a cruz e segui-Lo, imitar a sua dedicação ao
Pai e os seus gestos de serviço e amor, perder a vida a fim de a reencontrar.
E, dado que toda a vida de Cristo tem carácter missionário, os homens e
mulheres que O seguem mais de perto assumem plenamente este mesmo carácter.
A dimensão missionária, que pertence à
própria natureza da Igreja, é intrínseca também a cada forma de vida
consagrada, e não pode ser transcurada sem deixar um vazio que desfigura o
carisma. A missão não é proselitismo, nem mera estratégia; a missão faz parte
da «gramática» da fé, é algo de imprescindível para quem se coloca à escuta da
voz do Espírito, que sussurra «vem» e «vai». Quem segue Cristo não pode deixar
de tornar-se missionário, e sabe que Jesus «caminha com ele, fala com ele,
respira com ele, trabalha com ele. Sente Jesus vivo com ele, no meio da tarefa
missionária» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 266).
A missão é uma paixão por Jesus Cristo
e, ao mesmo tempo, uma paixão pelas pessoas. Quando nos detemos em oração
diante de Jesus crucificado, reconhecemos a grandeza do seu amor, que nos
dignifica e sustenta e, simultaneamente, apercebemo-nos de que aquele amor,
saído do seu coração trespassado, estende-se a todo o povo de Deus e à
humanidade inteira; e, precisamente deste modo, sentimos também que Ele quer servir-Se
de nós para chegar cada vez mais perto do seu povo amado (cf. Ibid., 268) e de
todos aqueles que O procuram de coração sincero. Na ordem de Jesus – «Ide» –,
estão contidos os cenários e os desafios sempre novos da missão evangelizadora
da Igreja. Nesta, todos são chamados a anunciar o Evangelho pelo testemunho da
vida; e, de forma especial aos consagrados, é pedido para ouvirem a voz do
Espírito que os chama a partir para as grandes periferias da missão, entre os
povos onde ainda não chegou o Evangelho.
Hoje, a missão enfrenta o desafio de
respeitar a necessidade que todos os povos têm de recomeçar das próprias raízes
e salvaguardar os valores das respectivas culturas. Trata-se de conhecer e
respeitar outras tradições e sistemas filosóficos e reconhecer a cada povo e
cultura o direito de fazer-se ajudar pela própria tradição na compreensão do
mistério de Deus e no acolhimento do Evangelho de Jesus, que é luz para as
culturas e força transformadora das mesmas.
Para viver o testemunho cristão e os sinais
do amor do Pai entre os humildes e os pobres, os consagrados são chamados a
promover, no serviço da missão, a presença dos fiéis leigos. Como já afirmava o
Concílio Ecuménico Vaticano II, «os leigos colaboram na obra de evangelização
da Igreja e participam da sua missão salvífica, ao mesmo tempo como testemunhas
e como instrumentos vivos» (Ad gentes, 41). É necessário que os consagrados
missionários se abram, cada vez mais corajosamente, àqueles que estão dispostos
a cooperar com eles, mesmo durante um tempo limitado numa experiência ao vivo.
São irmãos e irmãs que desejam partilhar a vocação missionária inscrita no
Baptismo. As casas e as estruturas das missões são lugares naturais para o seu
acolhimento e apoio humano, espiritual e apostólico.
As Instituições e as Obras Missionárias
da Igreja estão postas totalmente ao serviço daqueles que não conhecem o
Evangelho de Jesus. Para realizar eficazmente este objectivo, aquelas precisam
dos carismas e do compromisso missionário dos consagrados, mas também os
consagrados precisam duma estrutura de serviço, expressão da solicitude do
Bispo de Roma para garantir de tal modo a koinonia que a colaboração e a
sinergia façam parte integrante do testemunho missionário. Jesus colocou a
unidade dos discípulos como condição para que o mundo creia (cf. Jo 17, 21). A
referida convergência não equivale a uma submissão jurídico-organizativa a
organismos institucionais, nem a uma mortificação da fantasia do Espírito que
suscita a diversidade, mas significa conferir maior eficácia à mensagem
evangélica e promover aquela unidade de intentos que é fruto também do
Espírito.
Queridos irmãos e irmãs, a paixão do
missionário é o Evangelho. São Paulo podia afirmar: «Ai de mim, se eu não
evangelizar!» (1 Cor 9, 16). O Evangelho é fonte de alegria, liberdade e
salvação para cada homem. Ciente deste dom, a Igreja não se cansa de anunciar,
incessantemente, a todos «O que existia desde o princípio, O que ouvimos, O que
vimos com os nossos olhos» (1 Jo 1, 1). A missão dos servidores da Palavra –
bispos, sacerdotes, religiosos e leigos – é colocar a todos, sem excluir
ninguém, em relação pessoal com Cristo. No campo imenso da actividade
missionária da Igreja, cada baptizado é chamado a viver o melhor possível o seu
compromisso, segundo a sua situação pessoal. Uma resposta generosa a esta
vocação universal pode ser oferecida pelos consagrados e consagradas através
duma vida intensa de oração e união com o Senhor e com o seu sacrifício
redentor.
Ao mesmo tempo que confio a Maria, Mãe
da Igreja e modelo de missionariedade, todos aqueles que, ad gentes ou no
próprio território, em todos os estados de vida, cooperam no anúncio do
Evangelho, de coração concedo a cada um a Bênção Apostólica.
Vaticano, 24 de Maio – Solenidade de
Pentecostes – de 2015.
FRANCISCO
Mons. José Maria Pereira
Roteiro
Homilético 7 - Liturgia: Mons. José Maria Pereira
Roteiro
Homilético 8 - Liturgia: D. Anselmo Chagas de Paiva, OSB presbíteros.org
Quem quiser ser o primeiro, seja o servo
de todos
Mc 10,35-45
Meus caros irmãos e irmãs,
Através do Evangelho deste domingo,
somos convidados a fazer da nossa vida um serviço aos irmãos e a não nos
deixarmos manipular por sonhos pessoais de ambição, de grandeza, de poder e de
domínio, mas a fazer da nossa vida um dom de amor aos outros.
Continuamos a percorrer, com Jesus e com
os discípulos, o caminho para Jerusalém. O Evangelista São Marcos observa que,
nesta fase, Jesus vai à frente e os discípulos o seguem (cf. Mc 10,32). Jesus
continua a sua catequese e, mais uma vez, lembra a eles que, em Jerusalém, será
entregue nas mãos dos líderes judaicos e se cumprirá o seu destino de cruz (cf.
Mc 10,33-34). Durante esse caminho, Jesus vai completando a sua catequese sobre
as condições necessárias para integrar a comunidade messiânica. O texto que nos
é proposto demonstra que os discípulos continuam a raciocinar em termos de
poder, de autoridade, de grandeza e vêem na proposta do Reino Messiânico a ser
instaurado por Jesus a oportunidade de realizar os seus sonhos humanos.
Logo no início do texto é ressaltada a
pretensão de Tiago e de João, filhos de Zebedeu, de sentarem no Reino que vai
ser instaurado, um à direita e outro à esquerda de Jesus. A questão parece ser
apresentada como uma reivindicação de quem se sente com direito inquestionável
a um privilégio. Os dois irmãos, Tiago e
João, se apresentam a Jesus e, ousadamente, na frente de todos, sem qualquer
recato, dizem: “Mestre, queremos que faças por nós o que vamos pedir” (v.
35). Não pedem nem mesmo “por favor”,
mas exigem: “queremos”.
Certamente Tiago e João imaginam que o
Reino proposto por Jesus seria algo poderoso e glorioso e, por isto, almejam,
desde logo, lugares de honra ao lado dele. O fato mostra como Tiago e João,
mesmo depois de toda a catequese que receberam durante o caminho para
Jerusalém, ainda não entenderam lógica do Reino de Deus e ainda continuam a
refletir e a sentir de acordo com a lógica do mundo.
Diante desta manifestação de ambição e
honrarias, de privilégios, de primeiros lugares, Jesus não se mostra de forma
alguma condescendente, porque toda ambição contraria os fundamentos da sua proposta. Em relação a João e Tiago Jesus é severo:
“Vós não sabeis o que pedis. Por acaso podeis beber o cálice que eu vou beber?
Podeis ser batizados com o batismo com que vou ser batizado?” (v. 38). E para ajudá-los a superar a própria
incompreensão, serve-se de duas figuras: a do cálice e a do batismo.
O cálice é uma referência aos
sofrimentos pelos quais Jesus teria que passar.
Na agonia de Jesus na cruz, teria ele dito: “Pai, se for possível,
afasta de mim este cálice” (Lc 22,42).
Esta imagem do cálice aparece ainda com freqüência na Sagrada
Escritura. O cálice indica o destino,
favorável ou não de uma pessoa. Jesus
está ciente que o aguarda um cálice de sofrimentos, um cálice do qual gostaria
de ser poupado.
Já o batismo, de acordo com o texto, é
uma referência ao mar de sofrimentos em que Jesus será mergulhado. A imagem do batismo tem o mesmo sentido:
indica a passagem através das águas da morte.
Os sofrimentos e as aflições que o justo deve suportar são
freqüentemente comparados pela Bíblia a uma imersão em águas profundas ou à
agitação de águas impetuosas (cf. Sl 69,2-3; 42,8). Evoca a participação e imersão na paixão e
morte de Jesus (cf. Rm 6,3-4).
Para fazer parte da comunidade do Reino
é preciso, portanto, que os discípulos estejam dispostos a percorrer, com
Jesus, o caminho do sofrimento, da entrega, do dom da vida até à morte. Apesar
de Tiago e João manifestarem, com toda a sinceridade, a sua disponibilidade
para percorrer o caminho do dom da vida, Jesus não lhes garante uma resposta positiva
a esta pretensão.
Na segunda parte do nosso texto (vv.
41-45), temos a reação dos discípulos à pretensão dos dois irmãos e uma
catequese de Jesus sobre o serviço. A reação indignada dos outros discípulos ao
pedido de Tiago e de João indica que todos eles tinham as mesmas pretensões e
revela que estavam eles longe de ter assimilado o pensamento do Mestre. Novamente Jesus toma a palavra e outra vez
lhes ensina. Foi preciso que Jesus mostrasse qual deve ser a atitude dos seus
discípulos, tendo a si mesmo como referência: “O Filho do homem não veio para
ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (v.
45). Esta frase resume de forma
admirável a existência humana de Jesus.
Jesus se apresenta como o modelo a ser seguido. Sua vida sempre foi pautada como um serviço
aos pobres, aos desclassificados, aos pecadores, aos desprezados, aos últimos.
O ponto culminante dessa vida de doação e de serviço foi a morte na cruz,
expressão máxima e total do seu amor.
E Jesus aproveita a circunstância para
reiterar a sua instrução. Inicia recordando a eles o modelo dos governantes das
nações e dos grandes do mundo (v. 42). Eles afirmam sua autoridade absoluta,
dominam os povos pela força e submetem-nos, exigem honras, privilégios e
títulos, promovem-se à custa da comunidade, exercem o poder de uma forma
arbitrária. Ora, este esquema não pode
servir de modelo para os seus discípulos. Eles devem ter como referência a lei
do amor e do serviço. Os seus membros devem sentir-se “servos” dos irmãos,
dedicados em servir com humildade e simplicidade, sem qualquer pretensão de
mandar ou de dominar.
Jesus ainda enfatiza: “Quem quiser ser o
primeiro, será o último de todos e o servo de todos” (v. 44). Na comunidade
cristã, a única grandeza é a grandeza de quem, com humildade e simplicidade,
faz da própria vida um serviço aos irmãos.
Jesus nos convida a servir e partilhar com os irmãos os dons que Deus
nos concedeu.
Chama a nossa atenção que, quando por
ocasião da redação do Evangelho de São Marcos, um dos dois irmãos, Tiago, já
teria dado a sua vida por Cristo, morrendo como mártir em Jerusalém (cf. At
12,2) e o outro, João, estaria pregando o evangelho, dando, assim, prova de que
compreenderam o ensinamento do Mestre.
A mensagem que o Evangelho deste domingo
nos deixa está no sentido do serviço e aponta para a porta que leva à grandeza
evangélica: estar a serviço do próximo.
É o caminho que o próprio Cristo percorreu até à cruz: um itinerário de
doação e de amor. Muitos santos deixaram se guiar por esta lógica. Podemos citar São Vicente de Paulo e a Beata
Madre Teresa de Calcutá. Com coragem
heróica eles assumiram, na consagração total a Deus, o serviço generoso aos
irmãos mais necessitados.
Jesus também disse certa vez: “Sempre
que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o
fizestes” (Mt 25, 40). É uma verdade fundamental para compreender o sentido do
serviço que devemos realizar em prol dos mais pobres. Esta é a base para a vivência do Evangelho de
Jesus. Os santos tiveram consciência de
que, ao tocar os corpos enfraquecidos dos pobres, tocavam o corpo de Cristo. O
seu serviço destinava-se ao próprio Jesus, escondido sob as vestes angustiantes
dos mais humildes. O que realça o significado mais profundo do serviço é um gesto de amor feito aos famintos, aos
sequiosos, aos estrangeiros, a quem está sem as vestes, a quem está doente ou
na prisão, pois neles está o próprio Cristo (cf. Mt 25, 34ss).
Peçamos hoje ao Senhor que nos faça ser
mensageiros do amor. Que ele possa fazer de nós autênticos servidores da paz e
da alegria, levando a todos, sobretudo aos mais necessitados, o conforto e a
esperança. Assim seja.
D. Anselmo Chagas de Paiva, OSB
Roteiro
Homilético 9 - Liturgia: Roteiro presbíteros.org
RITOS INICIAIS
Sl 16, 6.8.9
ANTÍFONA DE ENTRADA: Respondei-me,
Senhor, quando Vos invoco, ouvi a minha voz, escutai as minhas palavras.
Guardai-me dos meus inimigos, Senhor. Protegei-me à sombra das vossas asas.
Introdução ao espírito da Celebração
É o dia do Senhor. Vamos celebrar a
Santa Missa, memorial da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus.
Jesus deu a vida por todos. Mas nem
todos têm conhecimento desta boa Nova. Hoje, Dia Mundial das Missões, somos
convidados a lembrar os nossos irmãos que ainda não conhecem Jesus Cristo,
único Salvador.
Todos havemos de tomar parte na cruzada
gigantesca de aumentar a cristandade, fazendo crescer o corpo místico de
Cristo, estendendo os limites do Reino de Deus a toda a redondeza da terra.
ORAÇÃO COLECTA: Deus eterno e
omnipotente, dai-nos a graça de consagrarmos sempre ao vosso serviço a
dedicação da nossa vontade e a sinceridade do nosso coração. Por Nosso Senhor…
LITURGIA DA PALAVRA
Primeira Leitura
Monição: Há algo de bom no sofrimento.
Também a dor se pode conciliar com o amor de Deus. O sofrimento foi e continua
a ser instrumento de salvação.
Isaías 53, 10-11
10Aprouve ao Senhor esmagar o seu Servo
pelo sofrimento. Mas, se oferecer a sua vida como vítima de expiação, terá uma
descendência duradoira, viverá longos dias, e a obra do Senhor prosperará em
suas mãos. 11Terminados os sofrimentos, verá a luz e ficará saciado. Pela sua
sabedoria, o Justo, meu Servo, justificará a muitos e tomará sobre si as suas
iniquidades.
Temos apenas 2 versículos do IV canto
dos Poemas do Servo de Yahwéh (Is 52, 13 – 53, 12); de todos os quatro é o mais
impressionante, o mais comentado e o mais meditado no cristianismo. Surpreende
vivamente o leitor o facto de se apresentar o triunfo e glorificação do servo
sofredor, precisamente por meio do seu sofrimento e humilhação; mais ainda, ele
assume as nossas dores e misérias com o fim de as curar, a chamada «expiação
vicária», uma concepção teológica deveras original. As tentativas de identificação
deste «servo» passaram por várias fases. O judaísmo alexandrino viu nele o povo
de Israel sofrendo as tribulações da diáspora, mas alentado pela esperança da
sua exaltação, ao passo que o judaísmo palestino via na sua glorificação o
futuro messias, mas os sofrimentos eram referidos ao castigo dos gentios; em
Qumrã o texto era aplicado ao Mestre da Justiça, o provável fundador da seita.
A interpretação cristã é unânime em reconhecer neste servo de Yahwéh a Jesus na
sua dolorosa Paixão, Morte e Ressurreição pela salvação de todos. O texto é-nos
proposto neste Domingo em função do Evangelho: «o Filho do Homem veio para
servir e dar a vida pela salvação de todos» (Mc 10, 45).
Salmo Responsorial
Sl 32 (33), 4-5.18-19.20.21 (R. 22)
Monição: Façamos deste salmo a nossa
oração de confiança no Senhor.
Refrão: DESÇA SOBRE NÓS A VOSSA MISERICÓRDIA,
PORQUE EM VÓS ESPERAMOS,
SENHOR.
A palavra do Senhor é recta,
da fidelidade nascem as suas obras.
Ele ama a justiça e a rectidão:
a terra está cheia da bondade do Senhor.
Os olhos do Senhor estão voltados para
os que O temem,
para os que esperam na sua bondade,
para libertar da morte as suas almas
e os alimentar no tempo da fome.
A nossa alma espera o Senhor:
Ele é o nosso amparo e protector.
Venha sobre nós a vossa bondade,
porque em Vós esperamos, Senhor.
Segunda Leitura
Monição: Cristo é o Sumo Sacerdote capaz
de se compadecer das nossas fraquezas. Por isso, a Ele havemos de recorrer,
cheios de confiança.
Hebreus 4, 14-16
Irmãos: 14Tendo nós um sumo sacerdote
que penetrou os Céus, Jesus, Filho de Deus, permaneçamos firmes na profissão da
nossa fé. 15Na verdade, nós não temos um sumo sacerdote incapaz de se
compadecer das nossas fraquezas. Pelo contrário, Ele mesmo foi provado em tudo,
à nossa semelhança, excepto no pecado.15Vamos, portanto, cheios de confiança ao
trono da graça, a fim de alcançarmos misericórdia e obtermos a graça de um
auxílio oportuno.
O autor, depois de já ter proclamado a
superioridade de Cristo sobre os Anjos (1, 5 – 2, 18) e sobre Moisés (3, 1 – 4,
11), começa agora a expor que Ele – Sumo Sacerdote da Nova Aliança – é superior
aos sacerdotes da antiga. Já tinha apresentado este sumo sacerdote da nossa fé
como sendo «digno de crédito» (3, 1.6), o que nos estimula a que «permaneçamos
firmes na fé que professamos» (v. 14); agora passa a apresentar outra sua
qualidade, «a misericórdia», que nos inspira a máxima confiança. Com efeito,
Jesus, ao contrário do sumo sacerdote da Lei antiga, que era uma figura
distante e separada dos pecadores (recordem-se as exigências do Levítico: Lv
21); Jesus é «capaz de se compadecer das nossas fraquezas», porque Ele mesmo
«foi provado em tudo como nós, excepto no pecado» (cf. 1ª leitura do IV Canto
do Servo de Yahwéh).
14 «Que penetrou os Céus». Jesus – o
novo Josué (o nome hebraico é o mesmo: «Yehoxúa‘») segundo a referência do v. 8
– já penetrou no descanso da nova terra prometida, os Céus, tendo-nos deixado
aberta a entrada, que atingiremos, se não formos infiéis como os antigos
israelitas (daí o apelo a conservar a fé, com firmeza). Por outro lado, o texto
sugere uma referência ao Yom-Kipur, ou Dia da Expiação, em que o sumo sacerdote
penetrava no Santo dos Santos (imagem dos Céus) através dos dois véus do
santuário, a fim de expiar os pecados do povo.
16 «Trono da graça». Esta expressão
parece inspirada no «trono da glória» de que se fala no A. T. (1 Sam 2, 8; Is
22, 23; Jer 14, 21; 17, 12; Sir 47, 11), o que terá influenciado a variante de
dois códices da Vulgata, que registam thronum gloriæ. É interessante notar que,
segundo os rabinos, Deus tinha dois tronos: o da justiça e o da misericórdia. O
trono de Jesus, de que se falou em 1, 8, já não aparece como o trono de justiça
do Salmo 45, 7 ali citado, mas é o da misericórdia, o «trono da graça», a que
podemos recorrer «cheios de confiança».
Aclamação ao Evangelho
Mc 10, 45
Monição: Cristo morreu e ressuscitou
para nossa salvação. Aclamemo-I’O com alegria.
ALELUIA
O Filho do homem veio para servir e dar
a vida pela redenção de todos.
Evangelho *
Nota de rodapé
* O texto entre parêntesis pertence à
forma longa e pode ser omitido.
*Forma longa: São Marcos 10, 35-45 Forma breve: São Marcos 10, 42-45
[Naquele tempo, 35Tiago e João, filhos
de Zebedeu, aproximaram-se de Jesus e disseram-Lhe: «Mestre, nós queremos que
nos faças o que Te vamos pedir». 36Jesus respondeu-lhes: «Que quereis que vos
faça?» 37Eles responderam: «Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à
tua direita e outro à tua esquerda». 38Disse-lhes Jesus: «Não sabeis o que
pedis. Podeis beber o cálice que Eu vou beber e receber o baptismo com que Eu
vou ser baptizado?» 39Eles responderam-Lhe: «Podemos». Então Jesus disse-lhes:
«Bebereis o cálice que Eu vou beber e sereis baptizados com o baptismo com que
Eu vou ser baptizado. 40Mas sentar-se à minha direita ou à minha esquerda não
Me pertence a Mim concedê-lo; é para aqueles a quem está reservado». 41Os
outros dez, ouvindo isto, começaram a indignar-se contra Tiago e João.]
42
Jesus chamou-os e disse-lhes: «Sabeis que os que são considerados como
chefes das nações exercem domínio sobre elas e os grandes fazem sentir sobre
elas o seu poder. 43Não deve ser assim entre vós: quem entre vós quiser
tornar-se grande, será vosso servo, 44e quem quiser entre vós ser o primeiro,
será escravo de todos;45porque o Filho do homem não veio para ser servido, mas
para servir e dar a vida pela redenção de todos».
Jesus vai a caminho de Jerusalém (cf.
10, 32-33). Apesar dos três anúncios da Paixão, os discípulos, embora com uma
certa sensação de medo (ibid.), não deixam de pensar que muito em breve o
anunciado reino de Deus se irá manifestar (cf. Lc 19, 11), pois todo o seu
interesse se fixava nisto. Antes que alguém lhes passe à frente, os dois
irmãos, Tiago e João (Mt fala da mãe), sem atenderem à figura ridícula que
faziam e à tensão e inveja a provocar nos colegas (v. 41), atrevem-se a tentar
que o Mestre se comprometa com eles, garantindo-lhes os primeiros postos no
reino, que imaginam terreno. Isto vai dar lugar a que Jesus os corrija, mas sem
os humilhar, e deixe um ensinamento muitíssimo importante para todos e para
sempre (vv. 42-45); neste sentido ensina o Vaticano II, GS 3: «Nenhuma ambição terrena
move a Igreja, mas unicamente este objectivo: continuar (…) a obra de Cristo
que veio ao mundo para dar testemunho da verdade (…), para servir, e não para
ser servido». Assim também fica reprovado o servir-se da Igreja, em vez de a
servir. A grandeza do discípulo de Cristo é servir desinteressadamente, como
fez o Mestre (cf. Jo 13, 14-17).
38-39 «Beber o cálice… receber o
baptismo», neste contexto, são duas imagens do sofrimento e da morte (cf. Lc
12, 50; Is 51, 17-23; Mc 14, 36; Salm 42, 8; 69, 2-3.15-15). A generosidade e
audácia dos dois agradou a Jesus, que lhes promete virem a participar do seu
destino doloroso – «beber o cálice» –,mergulhados no mistério do seu sofrimento
– «baptismo». De facto, Tiago foi martirizado em Jerusalém pelo ano 44 (Act 12,
2), por Herodes Agripa I; João foi preso e flagelado em Jerusalém (Act 4, 3; 5,
40-41), sofreu mais tarde o exílio na ilha de Patmos (cf. Apoc 1, 9), mas nada
se sabe de seguro sobre o seu problemático martírio.
40 «Não me pertence a Mim concedê-lo». A
expressão não implica inferioridade de Jesus, como pretendiam os arianos; não é
que falte poder a Jesus; Ele é que, fazendo tudo o que faz o Pai e com o mesmo
poder, nada faz com independência do Pai (cf. Jo 5, 17-30). Segundo a
explicação habitual, os dois dirigiram-se a Jesus como o Messias ao instaurar o
reino, e, enquanto tal, Ele não faz mais do que executar o projecto divino.
Sugestões para a homilia
Jesus, o missionário da Boa Nova
Missa e Missão
Evangelizar é obrigação e não privilégio
Jesus, o missionário da Boa Nova
Nas leituras que acabamos de ouvir,
Cristo é-nos apresentado como o servo do Senhor, o justo servo (1.ª Leit.) que
expia com as suas dores os nossos pecados. Sendo rico faz-se pobre por nossa
causa (2.ª Leit.) para nos tornar ricos, quer dizer para nos reconciliar com o
Pai. Veio para servir e dar a vida como resgate pela multidão (3.ª Leit.).
Cristo, o Verbo feito carne e enviado do
Pai, vem ao mundo para nos trazer uma grande nova: o Pai ama-vos (Jo 16,27). É
este o princípio e o fundamento de todo o Cristianismo. Deus quer fazer de nós
seus filhos adoptivos, a família de Deus na terra.
Deus quer que todos os homens se salvem
(1 Tim 2,4). Este desejo foi eficaz, porque se concretizou no primeiro
missionário que Deus Pai enviou à primeira infidelidade, o Verbo Encarnado que
veio reconduzir a humanidade aos seus destinos perdidos. E com que seriedade
tomou Ele esta missão, digam-no os seus trabalhos em busca dos pecadores, a
Eucaristia, a Cruz e a instituição da Igreja.
– Que é que mudou para melhor? Porque é
que tantos ainda não conhecem Jesus Cristo, ou vivem como se não O conhecessem?
Já lá vão dois milénios de Cristianismo e o mundo continua muito mal.
A missão ainda «vai no adro». A missão
de Cristo Redentor confiada à Igreja está ainda bem longe do seu pleno
cumprimento, advertiu João Paulo II (RM 1). E o Evangelho recorda-nos que a
semente cristã tem um dinamismo tão silencioso como imparável (Mc 4, 26).
Cresce sem que dêmos por isso. O seu crescimento é tão modesto como diminutos
são os grãos da mostarda. Mas depois se torna a árvore frondosa. Empenhemo-nos
com todas as forças no seu crescimento. E não esqueçamos que o Evangelho é
proposto num mundo que não o deseja, porque anuncia a honestidade, a justiça, o
serviço.
Missa e Missão
Estamos a celebrar a Missa no dia
mundial das missões. Missa e Missão, duas palavras que têm a mesma raiz: missio
– missão, envio. Na Missa, Jesus veio e vem, enviado do Pai – assim como o Pai
me enviou (Jo 20, 21). Na Missão, Jesus envia e os missionários são os seus
mensageiros – assim Eu vos envio a vós (Jo 20, 21).
Enviados a quem? Aos que nunca ouviram
falar d’Ele? Ou às ovelhas perdidas da casa de Israel? A todos. Aos que nunca
ouviram falar d’Ele: são milhões e milhões, a maior parte da humanidade. As
ovelhas perdidas da casa de Israel, que serão aqueles que precisam de ser
re-evangelizados: baptizados que perderam o sentido vivo da fé, já não se
reconhecem como membros da Igreja e levam uma vida distante de Cristo e do
Evangelho.
A Missa celebrou-a e celebra-a Cristo
com o seu Corpo e Sangue. Na Missão, participamos todos, no corpo da Igreja de
que fazemos parte, com o sangue das nossas veias, o sacrifício das nossas
ofertas e a dedicação das nossas vidas.
No tempo da publicidade, da TV e dos
computadores, nada substitui a voz que nos fala e a opção gostosa que temos de
fazer e de renovar. Por isso, precisamos da Missa, da Missão, dos missionários,
para que alguém, em nome de Alguém, nos mostre a verdade, nos faça olhar para
ela, olhando também para nós mesmos. Convertendo-nos em primeira mão, ou
reconvertendo-nos quando as crenças se diluem, ou a preguiça, ou a falta de
seriedade as atraiçoam.
Evangelizar é obrigação e não privilégio
Ide e evangelizai, manda Jesus (Mc 16,
15). A ordem é para todos os seus discípulos e discípulos somo-lo pelo
Baptismo. Todos: homens e mulheres, novos e idosos. Todos os cristãos são e
devem ser missionários.
Muitos interrogar-se-ão: – E eu que
posso fazer? Partir, eu? Estou noivo, tenho marido e filhos, o meu emprego, as
minhas responsabilidades sociais…
Deus não nos pede que deixemos a família
ou os trabalhos. Pede-nos, sim, que deixemos certo estilo de vida para estarmos
disponíveis, para fazer apostolado, para ajudar as missões. Não é preciso ir
para a praça pública fazer belos discursos. Basta o exemplo que damos por
aquilo de que estamos convencidos. Podemos ser verdadeiros apóstolos, e da
forma mais fecunda, também dentro das paredes do lar, no lugar de trabalho, na
cama de hospital e na clausura dum convento, lembra o Santo Padre na sua
mensagem para o dia de hoje.
A nossa missão será, por vezes, escutar
e acolher aqueles que andam dispersos. Dar-lhes motivos para que regressem.
Escutar os católicos não praticantes, ouvir as razões que os levaram a
afastar-se da prática religiosa. Dar entusiasmo aos sem esperança. Emprestarmos
os nossos braços, o nosso coração, para que eles possam ver um sentido em
nossas vidas. Rezar e sacrificar-se pelas missões, como Teresa de Lisieux,
declarada padroeira das missões e, agora, também Doutora da Igreja.
Fala o Santo Padre
MENSAGEM DO PAPA BENTO XVI
PARA O DIA MISSIONÁRIO MUNDIAL DE 2009
«As nações caminharão à sua luz» (Ap 21,
24)
Neste domingo dedicado às missões, me
dirijo sobretudo a vós, Irmãos no ministério episcopal e sacerdotal, e também
aos irmãos e irmãs do Povo de Deus, a fim de vos exortar a reavivar em si a
consciência do mandato missionário de Cristo para que «todos os povos se tornem
seus discípulos» (Mt 28, 19), seguindo as pegadas de São Paulo, o Apóstolo dos
Gentios.
«As nações caminharão à sua luz» (Ap 21,
24). O objectivo da missão da Igreja é iluminar com a luz do Evangelho todos os
povos em seu caminhar na história rumo a Deus, pois Nele encontramos a sua
plena realização. Devemos sentir o anseio e a paixão de iluminar todos os
povos, com a luz de Cristo, que resplandece no rosto da Igreja, para que todos
se reúnam na única família humana, sob a amável paternidade de Deus.
É nesta perspectiva que os discípulos de
Cristo espalhados pelo mundo trabalham, se dedicam, gemem sob o peso dos
sofrimentos e doam a vida. Reitero com veemência o que muitas vezes foi dito
pelos meus Predecessores: a Igreja não age para ampliar o seu poder ou reforçar
o seu domínio, mas para levar a todos Cristo, salvação do mundo. Pedimos
somente de nos colocar a serviço da humanidade, sobretudo da daquela sofredora
e marginalizada, porque acreditamos que «o compromisso de anunciar o Evangelho
aos homens de nosso tempo… é sem dúvida alguma um serviço prestado à comunidade
cristã, mas também a toda a humanidade» (Evangelii nuntiandi, 1), que «apesar
de conhecer realizações maravilhosas, parece ter perdido o sentido último das
coisas e de sua própria existência» (Redemptoris missio, 2).
1. Todos os Povos são chamados à
salvação
Na verdade, a humanidade inteira tem a
vocação radical de voltar à sua origem, que é Deus, somente no Qual ela
encontrará a sua plenitude por meio da restauração de todas as coisas em
Cristo. A dispersão, a multiplicidade, o conflito, a inimizade serão
repacificadas e reconciliadas através do sangue da Cruz e reconduzidas à
unidade.
O novo início já começou com a
ressurreição e a exaltação de Cristo, que atrai a si todas as coisas, as
renova, as tornam participantes da eterna glória de Deus. O futuro da nova
criação brilha já em nosso mundo e acende, mesmo se em meio a contradições e
sofrimentos, a nossa esperança por uma vida nova. A missão da Igreja é
«contagiar» de esperança todos os povos. Por isto, Cristo chama, justifica,
santifica e envia os seus discípulos para anunciar o Reino de Deus, a fim de
que todas as nações se tornem Povo de Deus. É somente nesta missão que se
compreende e se confirma o verdadeiro caminho histórico da humanidade. A missão
universal deve se tornar uma constante fundamental na vida da Igreja. Anunciar
o Evangelho deve ser para nós, como já dizia o apóstolo Paulo, um compromisso
impreterível e primário.
2. Igreja peregrina
A Igreja Universal, sem confim e sem
fronteiras, se sente responsável por anunciar o Evangelho a todos os povos
(cfr. Evangelii nuntiandi, 53). Ela, germe de esperança por vocação, deve
continuar o serviço de Cristo no mundo. A sua missão e o seu serviço não se
limitam às necessidades materiais ou mesmo espirituais que se exaurem no âmbito
da existência temporal, mas na salvação transcendente que se realiza no Reino
de Deus. (cfr. Evangelii nuntiandi, 27). Este Reino, mesmo sendo em sua
essência escatológico e não deste mundo (cfr. Jo 18, 36), está também neste
mundo e em sua história é força de justiça, paz, verdadeira liberdade e
respeito pela dignidade de todo ser humano. A Igreja mira em transformar o
mundo com a proclamação do Evangelho do amor, «que ilumina incessantemente um
mundo às escuras e nos dá a coragem de viver e agir e… deste modo, fazer entrar
a luz de Deus no mundo» (Deus caritas est, 39). Esta é a missão e o serviço
que, também com esta Mensagem, chamo a participar todos os membros e
instituições da Igreja.
3. Missio ad gentes
A missão da Igreja é chamar todos os
povos à salvação realizada por Deus em seu Filho encarnado. É necessário,
portanto, renovar o compromisso de anunciar o Evangelho, fermento de liberdade
e progresso, fraternidade, união e paz (cfr. Ad gentes, 8). Desejo «novamente
confirmar que a tarefa de evangelizar todos os homens constitui a missão
essencial da Igreja» (Evangelii nuntiandi, 14), tarefa e missão que as vastas e
profundas mudanças da sociedade actual tornam ainda mais urgentes. Está em
questão a salvação eterna das pessoas, o fim e a plenitude da história humana e
do universo. Animados e inspirados pelo Apóstolo dos Gentios, devemos estar
conscientes de que Deus tem um povo numeroso em todas as cidades percorridas
também pelos apóstolos de hoje (cfr. At 18, 10). De fato, «a promessa é em
favor de todos aqueles que estão longe, todos aqueles que o Senhor nosso Deus
chamar» (At 2,39).
Toda a Igreja deve se empenhar na missio
ad gentes, enquanto a soberania salvífica de Cristo não está plenamente
realizada: «Agora, porém, ainda não vemos que tudo lhe esteja submisso» (Hb
2,8).
4. Chamados a evangelizar também por
meio do martírio
Neste dia dedicado às missões, recordo
na oração aqueles que fizeram de suas vidas uma exclusiva consagração ao
trabalho de evangelização. Menciono em particular as Igrejas locais, os
missionários e missionárias que testemunham e propagam o Reino de Deus em
situações de perseguição, com formas de opressão que vão desde a discriminação
social até a prisão, a tortura e a morte. Não são poucos aqueles que
actualmente são levados à morte por causa de seu «Nome». É ainda de grande
actualidade o que escreveu o meu venerado Predecessor Papa João Paulo II: «A
comemoração jubilar descerrou-nos um cenário surpreendente, mostrando o nosso
tempo particularmente rico de testemunhas, que souberam, ora dum modo ora
doutro, viver o Evangelho em situações de hostilidade e perseguição até darem
muitas vezes a prova suprema do sangue» (Novo millennio ineunte, 41).
A participação na missão de Cristo, de
fato, destaca também a vida dos anunciadores do Evangelho, aos quais é
reservado o mesmo destino de seu Mestre. «Lembrem-vos do que eu disse: nenhum
empregado é maior do que seu patrão. Se perseguiram a mim, vão perseguir a vós
também» (Jo 15,20). A Igreja se coloca no mesmo caminho e passa por tudo aquilo
que Cristo passou, porque não age baseando-se numa lógica humana ou com a
força, mas seguindo o caminho da Cruz e se fazendo, em obediência filial ao
Pai, testemunha e companheira de viagem desta humanidade.
Às Igrejas antigas como as de recente
fundação, recordo que são colocadas pelo Senhor como sal da terra e luz do
mundo, chamadas a irradiar Cristo, Luz do mundo, até os extremos confins da
terra. A missio ad gentes deve ser a prioridade de seus planos pastorais.
Agradeço e encorajo as Pontifícias Obras
Missionárias pelo indispensável trabalho a serviço da animação, formação
missionária e ajuda económica às jovens Igrejas. Por meio destas instituições
pontifícias, se realiza de forma admirável a comunhão entre as Igrejas, com a
troca de dons, na solicitude recíproca e na comum projetualidade missionária.
5. Conclusão
O impulso missionário sempre foi sinal
de vitalidade de nossas Igrejas (cfr. Redemptoris missio, 2). É preciso,
todavia, reafirmar que a evangelização é obra do Espírito, e que antes mesmo de
ser acção, é testemunho e irradiação da luz de Cristo (cfr. Redemptoris missio,
26) através da Igreja local, que envia os seus missionários e missionárias para
além de suas fronteiras. Rogo a todos os católicos para que peçam ao Espírito
Santo que aumente na Igreja a paixão pela missão de proclamar o Reino de Deus e
ajudar os missionários, as missionárias e as comunidades cristãs empenhadas
nesta missão, muitas vezes em ambientes hostis de perseguição.
Ao mesmo tempo, convido todos a darem um
sinal crível da comunhão entre as Igrejas, com uma ajuda económica,
especialmente neste período de crise que a humanidade está vivendo, a fim de
colocar as jovens Igrejas em condições de iluminar as pessoas com o Evangelho
da caridade.
Nos guie em nossa acção missionária a
Virgem Maria, Estrela da Evangelização, que deu ao mundo Cristo, luz das
nações, para que leve a salvação «até aos extremos da terra» (At 13,47).
A todos, a minha Bênção.
Cidade do Vaticano, 29 de Junho de 2009
BENEDICTUS PP. XVI
LITURGIA EUCARÍSTICA
ORAÇÃO SOBRE AS OBLATAS: Fazei, Senhor,
que possamos servir ao vosso altar com plena liberdade de espírito, para que
estes mistérios que celebramos nos purifiquem de todo o pecado. Por Nosso Senhor…
SANTO
Monição da Comunhão
Todas as vezes que comemos deste pão e
bebemos deste cálice «não só anunciamos a morte do Redentor» (1 Cor 11, 26),
mas proclamamos também a sua ressurreição, enquanto esperamos a sua vinda
gloriosa (João Paulo II).
Sl 32, 18-19
ANTÍFONA DA COMUNHÃO: O Senhor vela
sobre os seus fiéis, sobre aqueles que esperam na sua bondade, para libertar da
morte as suas almas, para os alimentar no tempo da fome.
Ou:
Mc 10, 45
O Filho do homem veio ao mundo para dar
a vida pela redenção dos homens.
ORAÇÃO DEPOIS DA COMUNHÃO: Concedei,
Senhor, que a participação nos mistérios celestes nos faça progredir na
santidade, nos obtenha as graças temporais e nos confirme nos bens eternos. Por
Nosso Senhor…
RITOS FINAIS
Monição final
Jesus Cristo Eucaristia para o mundo nos
envia. Este mote deve ser para todos nós programa de vida. Unidos a Cristo,
devemos sentir-nos comprometidos com os homens nossos irmãos.
HOMILIAS FERIAIS
29ª SEMANA
2ª Feira, 22-X: O que é ser rico aos olhos
de Deus?
Rom 4, 20-25 / Lc 12, 13-21
Assim sucede a quem acumula para si, em
vez de se tornar rico aos olhos de Deus.
Abraão não pensou em si, quando Deus lhe
pediu a imolação do filho: «convenceu-se plenamente de que Deus era capaz de
fazer o que tinha prometido» (Leit).
Pelo contrário, o homem da parábola só
pensou em enriquecer cada vez mais e em viver regaladamente (Ev). Jesus
pede-nos que procuremos ser ricos aos olhos de Deus. São os pequenos
sacrifícios que fazemos em honra de Deus, como Abraão; são os tempos dedicados
à oração; é a preocupação pela alimentação da nossa alma, etc.
3ª Feira, 23-X: Vigilância e
responsabilidade.
Rom 5, 12-15. 17-19. 20-21 / Lc 12,
35-38
Felizes estes servos, que o senhor, ao
chegar, encontrar vigilantes.
É muito importante esta atitude de
vigilância. Se ela falta, pode entrar o pecado. E, pela falta de um só muitos
outros serão arrastados (Leit). É o que se poderia chamar a solidariedade no
pecado.
Pelo contrário, se há vigilância, abunda
a graça de Deus e muitos são igualmente beneficiados. É o equivalente à
Comunhão dos santos. Sintamos esta responsabilidade à hora da nossa luta
diária, para não cedermos com facilidade, pensando que não acontece nenhum mal
no mundo.
4ª Feira, 24-X: Receber bem o Senhor.
Rom 6, 12-18 / Lc 12, 39-48
Estai vós também preparados, porque à
hora em que menos pensais é que vem o Filho do homem.
Procuremos receber o Senhor com muito
amor (Ev), quando Ele vem ter connosco na Comunhão, nos tempos de oração,
quando nos traz a sua cruz para que a levemos um pouco, etc.
Para estarmos bem preparados, devemos
empregar os nossos talentos ao serviço de Deus e não ao serviço do pecado
(Leit). Não empreguemos mal o tempo como aquele servo que se dedicava a bater
nos outros (Ev). Libertemo-nos de alguma escravidão: preguiça, sensualidade,
comodismo, etc., para estarmos mais livres.
5ª Feira, 25-X: Da escravidão do pecado
à escravidão de Deus.
Rom 6, 19-23 / Lc 12, 49-53
É que a paga do pecado é a morte, ao
passo que o dom gratuito de Deus é a vida eterna.
Que diferença tão grande entre o fruto
da escravidão do pecado, que é a morte, e o fruto da escravidão de Deus, que é
a vida eterna! (Leit).
Para que haja esta libertação do pecado
é necessário uma fonte de energia, que é o fogo do amor de Deus, que o Senhor
veio trazer à terra (Ev). Ele desejava ardentemente sofrer a paixão e a morte
para nos poder libertar. O fogo do amor de Deus prende mais facilmente na
oração e os frutos da paixão são-nos aplicados na recepção do sacramento da
Penitência.
6ª Feira, 26-X: Os sinais provenientes
do nosso interior.
Rom 7, 18-25 / Lc 12, 54-59
Sabeis apreciar o aspecto da terra e do
céu; mas este tempo, como é que não o apreciais?
O Senhor convida-nos a apreciar os
sinais dos tempos (Ev), e poderíamos acrescentar saber apreciar os sinais que
se apresentam dentro de nós. Por exemplo S. Paulo verifica nele tendências
contraditórias: «O bem que eu quero, não o faço, mas o mal que não quero é que
pratico» (Leit). Por isso, se sente infeliz.
Quem nos poderá libertar deste
desconcerto? «Só Deus». O corpo reivindica os seus direitos, e a razão aponta
outros caminhos mais elevados. Os sentimentos deixam-se levar pelo que é
espontâneo e precisam ser igualmente conduzidos pela razão.
Sábado, 27-X: Como aumentar os frutos da
nossa vida.
Rom 8, 1-11 / Lc 13, 1-9
Há já três anos que venho procurar fruto
a esta figueira e não o encontro.
Deus procura igualmente frutos de
santidade nas nossas vidas. Como poderemos dar mais frutos no futuro? (Ev).
Uma das possibilidades é que nos
interessemos mais pelas coisas do espírito: «Os que vivem segundo a natureza
decaída interessam-se pelas coisas dessa natureza: os que vivem segundo o
espírito interessam-se pelas coisas do espírito» (Leit). A outra é deixar-nos
guiar pelo Espírito Santo: «também dará vida aos vossos corpos mortais, por
meio do seu Espírito, que habita em vós» (Leit).
Celebração e Homilia: BARRETO MARQUES
Nota Exegética: GERALDO MORUJÃO
Homilias Feriais: NUNO ROMÃO
Sugestão Musical: DUARTE NUNO ROCHA
Roteiro
Homilético 10 - Liturgia: comentário exegético presbíteros.org
EPÍSTOLA Hb 4, 14-16
(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)
INTRODUÇÃO: O autor toma como base de
seu argumento homilético a imagem de Cristo como Sumo Sacerdote. A diferença
entre o antigo Sumo sacerdote e o Cristo da nova era está na natureza dos dois
pontífices: o antigo era pecador e seu ato servia também para ele; a entrada
era num templo material que representava, mas não constituía, a presença da
divindade; sua função era anual e só podia ser exercitada durante uma vida
humana, curta e temporal. O novo Pontífice entrava no verdadeiro templo, no
santuário próprio da divindade. Sua entrada, única e atemporal, era uma
presença sempre atual e sua intercessão era a máxima; pois, sendo sem pecado,
era o justo que ofereceu sua vida em propiciação pelos homens. Seu sangue era o
sangue do homem oferecido em preço pelas dívidas do pecado. E pelo que se
refere aos homens, ele era o mais apropriado a se compadecer do homem caído,
pois experimentou, como homem, todas as dificuldades e necessidades para poder
apresentar as mesmas a Deus como um mendigo apresenta suas necessidades ao rico
que o observa. Nele temos a confiança que a nossa fé aviva e proporciona.
SUMO SACERDOTE: Tendo, pois, um sumo
sacerdote [archierea megan<749> <3173>=pontificem magnum] que
atravessou [dielëluthota<1330>= penetravit] os céus, Jesus, o Filho de(o)
Deus, seguremos [kratömen <2902> = teneamus] a confissão [omologias<3671>=
confessionem] (14). Habentes ergo pontificem magnum qui penetraverit caelos
Iesum Filium Dei teneamus confessionem. SUMO SACERDOTE: A palavra Archiereus
<749> sai 123 vezes no NT. Em plural significa chefes sacerdotais
[principes sacerdotum] e em singular chefe dos sacerdotes ou sumo sacerdote
[princeps sacerdotum]. Os chefes sacerdotais eram além do Sumo Sacerdote ou
Sumo Pontífice, todos os que tinham conseguido esse título que em tempos de
Jesus não era vitalício, além dos chefes das principais famílias sacerdotais
que tinham direito a estar no Supremo Tribunal, ou Sinédrio. Como exemplos do
1º significado temos Mt 26, 24 e do 2º significado temos Mt 26, 57, sendo que
neste último caso se refere a Caifás. De modo especial em Hebreus a palavra
archiereus sai 17 vezes das quais 15 em singular e sempre traduzidas por
Pontifex na Vulgata e nas outras duas, em plural, por sacerdotes. Entre os
romanos, Pontifex era o magistrado que presidia os ritos religiosos e os
sacrifícios. O termo PONTIFEX literalmente significa construtor de pontes. Em
Roma as pontes estavam sobre o rio Tibre [rio sacro, considerado uma deidade].
Por isso, unicamente as maiores autoridades estavam autorizadas a ir contra sua
corrente ou vontade, não o atravessando a pé molhado; pelo contrário, interrompendo
sua ação benéfica, como é a d’água no corpo. Assim, precisava-se de um
sacerdote que aplacasse a ira do rio. Em Roma existia o Collegium Pontificum,
ofício mais importante entre os sacerdotais, com o objeto de servir ao Rei como
conselheiro em tudo o concernente à Religião [tempos de Numa]. O chefe do
Colégio era o Pontifex Maximus de cargo vitalício. Antes de se fundar esta
instituição todos os seus cargos e ofícios eram assumidos pelo rei. Durante a
República os romanos criaram o Rex Sacrorum, para executar as tarefas
religiosas que antigamente pertenciam ao rei. Mas este rei das coisas sacras
não podia ter qualquer cargo político ou assento no senado. Este rei sacrorum
foi logo subordinado ao Pontifex Maximus como garantia de que não pudesse optar
à tirania. Durante a República, o Pontifex maximus escolhia os flamines
[sacerdotes especiais vinculados a Júpiter, Marte e Quirino] e as Vestais
[virgens que cuidavam do fogo sagrado da Diosa Vesta no foro romano]. O
Pontífice Máximo residia na Domus Pública
perto da casa das Vestais. Não podia usar a toga praetexta [com borda
púrpura] e era reconhecido pela secespita [faca do sacrifício] a patera [copa]
e um manto que cobria a cabeça. Escolhido entre os Pontífices (de 5 a 15,
segundo a época) o Pontífice Máximo recebia o cargo por toda vida. Júlio César
e seu sobrinho César Augusto chegaram a ser Pontífices Máximos. No caso dos
judeus, existiam na prática dois Sumos Pontífices: O escolhido pelo procurador
romano [no caso de Jesus naquele ano, era Caifás] e o escolhido pelo grêmio sacerdotal a quem
davam o nome de Sagan. O Sagan era o chefe [ou princeps=principal, caudilho,
chefe, cabeça, primeiro, príncipe] dos sacerdotes e politicamente mais
influente que o Sumo sacerdote anual, pois este dependia dos governadores
romanos e aquele era praticamente vitalício e dependendo do colégio sacerdotal.
À parte do Sagan, o Sumo Sacerdote era auxiliado por diversos funcionários,
todos provenientes das famílias mais importantes: o comandante do Templo, os
chefes das 24 equipes semanais, os sete vigilantes, três tesoureiros. Além do
sacerdote supremo, existiam cerca de 7 mil outros sacerdotes divididos em 24
equipes que se revezavam nos serviços do Templo. Em média, cada sacerdote
atuava cinco vezes por ano. Recebiam salário, que provinha dos sacrifícios e do
dízimo. A função sacerdotal era hereditária. Por isso Lucas fala de sob os
sumos pontífices Anás e Caifás (TEB), [epi archiereös = sub principibus
sacerdotum] (3, 2). O ministério especial do Sumo Sacerdote [Kohen
Gadol=sacerdote grande (o hebraico não tem superlativo] consistia, de modo
especial, em celebrar os ritos do Yom
Kipppur [dia da expiação]. Somente ele entrava uma vez cada ano no santo dos
santos, oferecendo o sangue do macho cabrito como expiação dos pecados do povo.
O grego do versículo [archierea megan] parece uma tradução literal do nosso
Kohen Gadol, talvez indicando que a carta foi escrita em aramaico, ou por um
judeu cuja língua materna era essa mesma. ATRAVESSOU OS CÉUS: Jesus, como
Cristo, se tornou Sumo Pontífice [Kohen Gadol] e teve que realizar esse ato de
entrar no Santo dos santos [Kodesh Hakodashim ] para expiar os pecados do povo.
Só que Cristo foi constituído Sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedec (Hb
6, 9), ou seja, in aeternum e no lugar de entrar num templo feito por mãos
humanas, entrou no templo que não foi desta criação (9, 11). Ofereceu-se a si
mesmo, não para oferecer sangue alheio, mas seu próprio sangue (9, 25). E o fez
uma só vez, não todos os anos (9, 11 e 25). Paulo dirá que Cristo foi proposto
como propiciação [vítima expiatória] para obter por seu sangue o perdão dos
pecados (Rm 3, 25). Neste versículo, o autor da carta explica qual foi o
tabernáculo: os céus. E nesta entrada, junto ao trono de Deus, permanece eternamente
nesse seu ofício de sacerdote,
intercedendo por seu povo (2, 17). SEGUREMOS A CONFISSÃO: O verbo grego
Krateö<2902> significa ser forte, dominar, apanhar ou agarrar, segurar, manter firme, que a
Vulgata traduz por teneamus significando agarrar com a mão, distinto do
habitual habeamus, que é um simples ter. Omologia<3671> é acordo,
confissão, pacto, profissão de fé, crença. Poderíamos traduzir por mantenhamos
firme nossa crença (nEle) ou talvez mantenhamos firme o Kerigma que a Igreja
propunha como verdade revelada. A razão é que foi visto subir e os anjos deram
testemunho de que ele estava no céu (At 1, 11)
e que essa subida é continuação do seu trabalho na terra, como veremos
nos versículos seguintes.
SEMELHANTE A NÓS: Pois não temos um Sumo
Sacerdote sem poder [dunamenon<1410>=qui non possit] compadecer-se
[sumpathësai<4843>=compati] com nossas fragilidades [astheneiais
<769> =infirmitatibus]; pois tentado foi
[pepeiramenon<3987>=temptatum] em tudo segundo nossa semelhança
[omoiotëta <3665> = similitudine], fora de pecado
[amartias<266>=peccato] (15). Non enim habemus pontificem qui non possit
a conpati infirmitatibus nostris temptatum autem per omnia pro similitudine
absque peccato. A palavra grega Astheneia<769>
originariamente significa falta de força ou energia. De onde fraqueza,
deficiência, debilidade. Tudo que tem limitações e imperfeições foi também
suportado por esse Sumo Sacerdote nosso. Uma única exceção na semelhança: O
pecado. Já Paulo o afirmava: Em condição semelhante à de um homem pecador… para
condenar o pecado em sua mesma natureza humana (Rm 6, 3). Porque, despojado de
sua existência como Deus, tomou a figura de um escravo, tornando-se semelhante
a um homem e reconhecido em figura humana (Fp 2, 7). Fato ressaltado pelo autor
em 2, 7: Convinha que em todas as coisas se tornasse semelhante aos irmãos para
ser misericordioso e fiel sumo sacerdote nas coisas referentes a Deus e para
fazer propiciação pelos pecados do povo. FORA DO PECADO: Paulo também fala a
mesma linguagem quando diz: A quem não
conheceu o pecado Ele o identificou com o pecado por nós a fim de que por ele,
nos tornemos justiça de Deus (2 Cor 5, 21).
E também: Deus enviando seu próprio Filho na condição da nossa carne de
pecado, condenou o pecado na carne (Rm 8, 3). Sendo sem pecado, tomou como se
fazia no AT, os pecados de todos e como bode expiatório o caper emissarius da
Vulgata, bode emissário de Levítico 16, 8-10, ou bode expiatório, que recebe o
nome de Azazel, palavra escura, que não aparece em nenhuma outra parte da
Bíblia hebraica; este bode recebe os pecados do povo e é largado no deserto. O
outro bode é morto em sacrifício e com o seu sangue, o sumo sacerdote entra no
Santo dos Santos e faz aspersão sobre o propiciatório para o perdão dos pecados
dele mesmo e do povo. É assim que Cristo entrou com seu próprio sangue no Santo
dos Santos para se tornar propiciação pelos pecados do povo, obtendo uma
libertação definitiva (Hb 9, 12).
COM CONFIANÇA: Portanto, aproximemo-nos
com coragem [parrësias<3954>=fiducia] ao trono da mercê
[charitos<5485=gratiae] para recebermos misericórdia
[eleon<1656>=misericordiam], e graça [charin<5485>= gratiam]
encontrarmos em favorável [eukarion<2121>=oportuno] auxílio [boëtheian
<996>=auxilio] (16). Adeamus ergo cum fiducia ad thronum gratiae ut
misericordiam consequamur et gratiam inveniamus in auxilio oportuno. CORAGEM: A
parrësia<2121> grega que o latim traduz como fiducia, pode ser traduzido
por sem medo, com atrevimento, com plena confiança. TRONO DA MERCÊ: Mercê é uma
tradução do grego Charis <5485> que tem vários sentidos em grego. Neste
caso, equivale ao dom de Deus, enquanto recebido pelo homem como amor,
benevolência, misericórdia, fidelidade, favor, bênção, e, finalmente, salvação
e vida eterna. Paulo diz em Rm 11, 6: Deus fêz-lo por pura generosidade
[charis] e não por méritos humanos; pois se não fosse assim, não poderíamos
falar da generosidade [charis] de Deus. Essa mercê é o perdão e por isso
recebemos, em primeiro lugar misericórdia [eleos] e logo favores [charis]. AUXÍLIO
FAVORÁVEL: Eukairos<2121> é um adjetivo que significa oportuno, favorável
e boëtheia <996> significa
auxílio, ajuda, socorro. Que significa auxílio favorável? Pois que seja um
auxílio necessário e conforme aos desígnios de Deus.
EVANGELHO (Mc 10, 35-45)
(lugar paralelo Mt 20, 20-28)
OS FILHOS DE ZEBEDEU
(Pe. Ignácio, dos padres escolápios)
O PROTAGONISTA: Em Mateus 20, 20-28,
temos uma relação paralela com uma diferença: quem pede os postos de honra no
novo Reino é a mãe dos dois apóstolos, Tiago e João, junto com seus dois
filhos. O nome dela era Salomé [=perfeita], mulher do Zebedeu, forma grega de
Zebadias ou Zabdiel [= Jahvé deu]. Zebedeu era um pescador da Galileia com bens
suficientes para ter serventes ou jornaleiros a seu serviço (Mc 1, 20) e
suficientemente rico, para um dos filhos, João, ser conhecido pelo Pontífice
(Jo 18, 15), quem ao mesmo tempo podia, sem dificuldades, tomar em sua casa a
mãe de Jesus (Jo 19, 27). Salomé era uma das mulheres que servia o colégio
apostólico e que estava subindo com Jesus a Jerusalém (Mt 27, 55-56). O
silêncio que os evangelistas guardam sobre o pai, Zebedeu, seria talvez devido
à sua morte pouco depois do encontro com Jesus na Galileia quando este teria
feito o chamado a seus dois filhos (Lc 5, 10). Os antigos pensavam que Salomé
estava aparentada com Jesus através de Zacarias, o esposo de Isabel, esta por
sua vez parenta de Maria (Lc 1,36). Se isso for verdade, explicaria algumas das
coisas que veremos na continuação.
O PEDIDO: Então aproximam-se dele Jacob [Iaköbos<2385>=Iacobus] e
João [Iöannës <2491> Iohannes], os filhos de Zebedeu
[Zebedaiou<2199>Zebedaei] dizendo: Mestre, queremos que faças por nós
tudo o que vamos pedir (35). Et accedunt ad illum Iacobus et Iohannes filii
Zebedaei dicentes magister volumus ut quodcumque petierimus facias nobis. Assim
como a Pedro, Jesus mudou o nome do pai dos dois irmãos e deu a eles o
sobrenome de filhos do Trovão, ou Boanerges, que correspondia a filhos da voz
de Deus, ou seja, da sua vingança (1 Sm 2, 10). Pelo que respeita ao nome de
Jacob este filho do Zebedeu é chamado de Jacobo, o maior, para distingui-lo do
outro Jacobo, o menor, filho de Alfeu. Jacob é de origem hebraica e de significado suplantador, como foi chamado
o segundo filho de Rebeca e Isaac, gêmeo de Esau. Jacobo seria sua tradução
direta ao espanhol; porém têm muitas variantes, como Giacomo, Jacme em
provençal do qual se deriva James em inglês, Jaime em espanhol. Da pronúncia
Santi Jacobi, no latim adulterado da Idade Média temos Santiago nome que deu
origem a Tiago ou Diago e daí Diego. Iöannes: do hebraico Iochanan [Jahveh
favoreceu] era o nome de um sacerdote durante o Pontificado de Joaquin, que
voltou junto com Zorobabel. O nosso João era irmão menor de Tiago, e como este
filho do Zebedeu e segundo a tradição, o autor do quarto Evangelho Segundo
Mateus, foi precisamente a mãe, de nome Salomé (Mt 27, 56, comparado com Mc 15,
40) quem, no lugar de seus filhos, prostrou-se em reverência para o pedido (Mt
20, 20).
JESUS PERGUNTA: Jesus, pois, disse-lhes: Que quereis que eu vos faça?
(36). Eles então lhe disseram: dá-nos que um à direita e um à esquerda tua
estejamos sentados [kathisömen <2523>=sedeamus] na tua glória [doxë
<1391>=gloria] (37). At ille dixit eis quid vultis ut faciam vobis. Et
dixerunt da nobis ut unus ad dexteram
tuam et alius ad sinistram tuam sedeamus in gloria tua. Segundo Mateus,
é a mãe que pede para seus dois filhos e no lugar da glória [doxa] é o Reino.
Quer seja diretamente, quer através e junto com a mãe, o que é mais natural, os
dois pediram os postos de maior relevância no Reino que pensavam Jesus ia
instaurar em Jerusalém, para onde se dirigiam. O seu modo de julgar, tanto da
mãe como dos filhos, era totalmente humano, como se o novo reino fosse um Reino
temporal e geográfico ao modo dos reinos que eles conheciam. Por isso dirá
Jesus: “sabeis que os que são considerados príncipes dos gentios os dominam”
(42). Sua maneira de pensar era a dos judeus da época que pretendiam um reino
davídico de dominação, ao estilo romano. Se realmente Salomé fosse parenta
indireta de Jesus, como dizem certos comentaristas, seu pedido e sua atuação
não seriam tão inusitados e desmedidos. O parentesco, nos tempos de Jesus, era
motivo e razão de prerrogativas especiais por parte dos que Jesus chama grandes
da política e da sociedade (42). Objetar-se-á que Pedro tinha sido louvado e
preferido como chefe da comunidade (Mt 16, 16). Porém em Marcos (8, 27-30)
existe a confissão de Pedro mas não o prêmio pela mesma como em Mateus (16, 17-18),
ou Lucas (9, 18-21). Somente Mateus parece incorrer em certa falta de lógica ao
permitir que a mãe e filhos peçam um lugar que já foi destinado por Jesus como
sendo de Pedro. Porém, a recusa de Jesus diante da tentação de Pedro, a quem
chama de Satanás, no capítulo 16, parecia indicar que o primado de Pedro tinha
sido rebaixado. A transfiguração, chamando os três discípulos, mostrava uma
certa predileção sobre os dois irmãos até o ponto deles, os filhos do trovão
(Boanerges em Mc 3, 17), pedirem ao Senhor licença para lançar sobre uma aldeia
samaritana fogo do céu (Lc 9, 54) nessa última viagem a Jerusalém, como Elias
em 2 Rs 1, 10-12. Tinham, pois, motivos aparentes e suficientes para o pedido
que estavam fazendo a Jesus: Assentar-se um à direita e outro à esquerda do
trono de Jesus quando este estivesse na sua glória, isto é, como Messias
triunfante. A ele se dirigem como o novo rei de Israel que em Jerusalém vai
iniciar o Reino. De Ciro, rei da Pérsia, se conta que preferia colocar seus
hóspedes mais honrados à esquerda, pois era o lugar do coração. Não eram só
privilégios (ver 1 Rs 2,19). Eram também verdadeiros ofícios em que o poder
real era exercido através dos ministros. O Salmo 110, 1 fala do Messias como
convidado por Jahvé, para se assentar à direita do trono divino. Isso
significava participar do poder e da dignidade de quem o honrava. O Messias era
assim solicitado para compartir do poder e da dignidade de Jahvé. Jesus utiliza
o salmo davídico com interpretações messiânicas para confundir a ciência dos
fariseus que não souberam responder por que Davi chama Senhor ao messias sendo
que este era filho ou descendente dele e, portanto, inferior a ele próprio (Mc
12,35-37). Já o título de Boanerges, que Jesus deu aos dois irmãos indica que
eram caracteres fortes, inclinados a comandar. Pediam, pois, o que naturalmente
sentiam como vocação.
RESPOSTA DE JESUS: Jesus, então, lhes
disse: Não conheceis que pedis. Podeis beber a copa [potërion
<4221>=calicem] que eu bebo e o batismo [baptisma <908>=baptismum]
(em) que eu sou batizado, ser batizados? (38). Iesus autem ait eis nescitis
quid petatis potestis bibere calicem quem ego bibo aut baptismum quo ego
baptizor baptizari. Jesus responde de maneira fina, sem indignar-se por um
pedido aparentemente desmedido e imprudente. “Não sabeis o que estais pedindo”.
E explica na continuação como ele deve adquirir isso que eles chamam de glória
do Reino: um sacrifício de amargura e sangue. Um cálice que deve beber e um
batismo em que deve ser submergido. O COPO: Poterion<4221>. Era o cálice
da vingança divina frequentemente apresentado pelos profetas. O Senhor tem uma
copa na mão. Nela derrama um vinho fermentado e bem misturado e obriga a
bebê-lo a todos os malvados da terra até a última gota (Sl 75, 9-10). Em Is 51,
17 lemos: Desperta. Desperta, levanta-te ó Jerusalém que da mão do Senhor
bebeste o cálice da sua ira, o cálice do atordoamento e o esgotaste. Em
Jeremias 25, 15: Porque assim me disse o Senhor, o Deus de Israel: Toma de
minha mão este cálice do vinho de meu furor e darás a beber dele a todas as
nações às quais eu te enviar. Ou Ezequiel 23, 31-33: Seguiste (Jerusalém) o
caminho de tua irmã (Samaria). Por isso entregarei o seu copo na tua mão…
beberás o copo de tua irmã, copo fundo e largo.. copo de espanto e desolação.
Era, pois, o cálice de vingança, cólera e indignação. Esse era o cálice que por
três vezes Jesus rogou ao Pai para não bebê-lo (Mc 14, 36). Jesus sabia que ele
seria tratado como inimigo pela ira do Pai. O BATISMO: Baptisma<908>. Só
Marcos traz esta comparação. Era uma submersão ou imersão na água, ou no fogo
do Espírito Santo (Mt 3, 11). Mas Jesus toma essa figura para designar o seu
batismo de sangue, imerso no seu próprio sangue, como o guerreiro que vem de
Edom (figura do país inimigo por excelência) com a veste manchada do sangue dos
inimigos, como quem sai do lagar após pisar as uvas. Porque era o dia da
vingança e chegava o ano dos meus redimidos (Is 63, 1-4). Só que esse sangue
era o próprio de Jesus em que a justiça divina tinha determinado castigar o
pecador e por isso ele, Jesus, dirá: tenho que ser batizado num batismo (de
dores) e como me angustio até ser consumado (Lc 12, 50). E a Pedro: Mete a
espada na bainha; não beberei porventura, o cálice que o Pai me deu? (Jo 18, 11). Jesus convida, pois, os seus
dois pedintes a se unirem a Ele na hora de sua paixão e morte. A morte de Jesus
não era um ato de rancor e vingança dos dirigentes de Israel, nem provinha de
uma decisão iníqua da justiça romana, nem demonstrava um triunfo do mal demoníaco,
mas um ato de amor do Pai que mostrava sua misericórdia salvando o pecador e
revelava sua justiça punindo o justo, para indicar a gravidade do pecado e a necessidade da conversão.
PODEMOS: Eles, portanto, disseram-lhe:
Podemos. Jesus, pois, disse-lhes: O copo que eu bebo, bebereis e o batismo o
qual eu sou batizado sereis batizados (39). Mas o estar sentado à direita de
mim ou à esquerda de mim não está a mim dar, mas para os que estão
preparados(40). At illi dixerunt ei possumus Iesus autem ait eis calicem quidem
quem ego bibo bibetis et baptismum quo ego baptizor baptizabimini. Sedere autem
ad dexteram meam vel ad sinistram non est meum dare sed quibus paratum est.
Literalmente, traduzimos o grego como o batismo o qual eu sou batizado que o latim
corrige com uma preposição implícita quo correspondente a no qual, que
significa a imersão total em sua paixão e morte. Diante da resposta positiva e
animosa dos discípulos, Jesus promete que realmente assim sucederá, mas que se
assentar à direita e à esquerda é uma questão de previdência divina, preparada
pelo Pai como diz Mateus (20, 23). Cumpriu-se a profecia? No caso de Jacob ou
Tiago de modo material e totalmente, pois foi morto no ano 44 por ordem de
Agripa (At 12, 2). De João diz Tertuliano que foi martirizado ante portam
latinam submergido em azeite fervente do qual saiu ileso, para morrer de velho
em Patmos, a ilha do Egeu. A segunda parte de Jesus, não dispor dos lugares
preferidos no Reino, porque já estão predestinados ao usar a passiva, indica
que é desígnio de Deus, ou do Pai como frequentemente Jesus afirma, para coisas
que não correspondem a sua humanidade, mas aos planos divinos, não a ele como
Mestre de um colégio apostólico, mas que já está determinado pela suprema
autoridade de Deus, Criador e Senhor do Universo. Nada tem a ver com o mistério
trinitário, completamente desconhecido dos apóstolos nesse momento. O Pai que
eles conheciam era o celestial, do qual deviam se tornar filhos (Mt 5, 45),
Senhor do céu e da terra [de todo o Universo] (Mt 11, 25), que é quem decide
quem deve entrar no Reino (Jo 6, 44), que, portanto, reservava os melhores
postos no Reino (Mt 20, 23) e de cujos planos futuros nem os anjos nem o Filho
podiam saber com determinação o dia e a hora (Mt 24, 36 e Mc 13, 32). Próprio
do Filho era o julgamento final (Mt 25, 34), como correspondia a um triunfador
sobre seus inimigos. A suprema ironia é que no momento em que Jesus recebe o
Reino, na cruz, estavam com ele dois homens um à direita e outro à esquerda e
não eram precisamente seus mais íntimos discípulos.
REAÇÃO DOS OUTROS: Por isso, os dez
começaram a estar indignados por causa de Jacob e João (41). Et audientes decem
coeperunt indignari de Iacobo et Iohanne. A ambição humana estava fortemente
arraigada no ânimo dos discípulos de Jesus. Daí a sua indignação com os dois
irmãos que pretendiam a melhor parte num futuro Reino, que todos estavam
esperando com a entrada de Jesus em Jerusalém.
A LIÇÃO: Então Jesus, tendo os
convocado, diz-lhes: Tendes conhecido que, os que aparecem dominar as nações as
subjugam e os grandes deles, exercem autoridade neles (42). Não será, portanto, assim entre vocês, mas
quem quiser se tornar grande entre vocês será servidor de vocês (43). E se
alguém entre vocês quiser se tornar primeiro, será de todos, escravo (44).
Iesus autem vocans eos ait illis scitis quia hii qui videntur principari
gentibus dominantur eis et principes eorum potestatem habent ipsorum. Non ita
est autem in vobis sed quicumque voluerit fieri maior erit vester minister. Et
quicumque voluerit in vobis primus esse erit omnium servus. Jesus opõe seu
Reino aos reinos em prática dos povos pagãos vizinhos. Nestes últimos, os
chefes dos mesmos tiranizam os povos e os grandes dos mesmos exercem um poder
opressor sobre os súditos. Bastava ser um adulto na época, para ter sofrido os
abusos e vexações, ao menos tributárias, de Herodes, de Arquelau e de Antipas
para não falar dos venais procuradores romanos. No reino de Cristo, do Messias,
cuja semente eram eles, não podia acontecer isso: o que aspira a ser grande
tinha que ser servidor, e o que almeja ser o primeiro deve ser o escravo de
todos. Não devem existir ambições nem pretensões nas lideranças do Reino, já
que não são para proveito próprio, senão um ministério, uma diakonia, exatamente
como aquele que serve de livre vontade ou é escravo. Assim entendidos, quem
deseja ambicionar postos que unicamente ofereçam serviço e trabalho escravo?
O EXEMPLO PRÓPRIO: Assim, pois, o Filho
do Homem não veio (para) ser servido, mas servir e dar sua vida (como) resgate
[lytron <3083>=redemptionem] por
muitos (45). Nam et Filius hominis non venit ut ministraretur ei
sed ut ministraret et daret animam suam redemptionem pro multis. As palavras
entre parênteses não estão no grego original, mas foram acrescentadas para
completar a sintaxe em português. FILHO DO HOMEM: O Filho do homem tem vários
sentidos. Um deles é o substituto do eu, assim como a gente o faz em português.
A frase seria traduzida: “Assim como eu …”. Jesus, Rei e Chefe principal do
novo Reino, teve não um momento, mas uma vida dedicada ao bem dos súditos,
dando inclusive sua vida como resgate por muitos. LYTRON: A palavra grega
Lytron<3083>, traduzida ao latim por Redemptio merece ser estudada. Só
sai no NT em ambos os casos paralelos, os de Marcos e Mateus, que aqui tratamos
de estudar. Significa resgate, ou preço pago pela liberdade ou alforria de um
escravo. Geralmente usa-se a palavra Apolytrosis, que aparece em Lucas e nas
cartas de Paulo (10 vezes), com um significado mais teológico e restritivo de
resgate, ou pagamento, ao preço do sangue de Cristo (Ef 1,7), e que geralmente
é traduzida por redenção. Era o preço pago pela mudança de escravos a libertos
[no caso dos cristãos a filhos], o preço da liberdade segundo o que vemos em Jo
8, 33. De escravos do pecado, que segundo Paulo tem personalidade própria (Rm
6, 6), à liberdade de filhos ( Jo 8, 36). O preço foi o sangue que Jesus
derramou até a última gota (Jo 19, 34). E como no sangue estava a vida, por
isso ele afirma que deu sua vida pelos que eram até então pecadores e,
portanto, escravos do pecado, mas que agora nele crêem (Jo 8, 31-32) e se
tornaram amigos (Jo 15, 15) e filhos. Dará sua vida em resgate por muitos, que
diz Jesus no parágrafo final de hoje (45).
PISTAS: 1) Na história da Igreja temos
repetido esta atuação dos filhos do Zebedeu. O poder real era outrora
ambicionado pelos representantes do clero. Numerosos antipapas especialmente no
século X, litígios entre bispos desde o século III, são uma amostra cabal. Hoje
esse desejo de mando, se trasladou ao laicato, disfarçado pelo aspecto de
democratização e igualdade, ou sob a falácia de discriminação do sexo. Será que
a razão última destas demandas é querer servir, ou melhor, pretender dominar?
2) Existe uma necessidade de vocações ao
sacerdócio, à vida religiosa, à dedicação missionária, porque falta o
verdadeiro espírito do reino, o que o distingue de seus homônimos terrestres: é
o espírito de serviço que implica o último lugar. Que posso fazer eu por minha
pátria? – foi o slogan de Kennedy. Que posso fazer eu pelo Reino de Cristo,
deve ser a pergunta de um cristão à qual devemos responder com sinceridade e
generosidade.
3) Não sabemos o que pedimos quando
esperamos e rogamos por um triunfo pessoal. Este será o do cálice que optamos
por beber e o batismo de dor e sofrimento que escolhemos para ser submergidos
nele como o Senhor Jesus foi submergido. Sem dor não existe nova criatura assim
como não pode existir triunfo verdadeiro.
4) É de se ressaltar que após 2 mil anos
estamos submergidos na mesma ignorância que oprimia os filhos do Zebedeu. Ainda
sonhamos em coroas temporais e com recompensas terrenas. Vemos simples clérigos
desejar títulos de monsenhor ou cônego, como se isso fosse um degrau para
melhor espalhar e engrandecer o Reino. Existem poucos crentes que como Isabel
da Hungria deixam a coroa terrena no banco da igreja para colocar em sua cabeça
a coroa de espinhos de Jesus crucificado que estava no crucifixo da igreja. É,
pois, através de muitas tribulações que devemos entrar no reino dos céus (At
14, 22).
5) O pior não é que encontremos Tiago e João dentro
da Igreja. O pior é que, como os outros restantes apóstolos, dificilmente
haverá quem não os condene; porém não por outro motivo que não seja a inveja.
Nada façais por partidarismos ou vanglória, mas por humildade, considerando
cada um os outros superiores a si mesmo (Fp 2, 3). Bem-aventurado o homem que,
com sinceridade, pode regozijar-se quando o outro é exaltado, embora ele mesmo
seja esquecido e posto de lado! Escolhamos para fazer o bem, áreas nas quais
outros não querem trabalhar, áreas – podemos assim chamá-las – de latrinas do
Reino.