Roteiro Homilético 10: Adroaldo Palaoro
“E se saudais
somente os vossos irmãos, o que fazeis de extraordinário? (Mt 5,47)
A reflexão
bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, sacerdote jesuíta, comentando o
evangelho do 7° Domingo do Tempo Comum (19/02/2017) que corresponde ao trecho
de Mateus 5, 38-48.
Com estas
palavras, Jesus estabelece a diferença entre o modo pagão e o modo cristão de viver
o cotidiano. A “cotidianidade” de nossa vida está tecida de coisas
“ordinárias”, contraposta ao que ocorre de maneira “extra-ordinária”. A maioria
das pessoas vive restrita ao ordinário com o anonimato que ele envolve. No
entanto, no seio do ordinário pode brotar uma mudança, uma transformação.
“Se, às vezes,
há um fastio na rotina, não raro ela revela um mistério insondável” (Cláudio
Van Balen). Quando assumimos o nosso ordinário e o vivificamos com injeções de
novidade e de criação, ele se torna o “lugar” das experiências. E a
“experiência é a sabedoria da vida”.
No ordinário
se encontram as “pequenas práticas com sucesso”. O ordinário pode significar um
avanço na aceitação do “pequeno”, das coisas mais simples... tudo tem sentido,
tudo é digno de ser cuidado. Nesse sentido, o ordinário que conserva, também
pode provocar o surgimento do novo; o ordinário que aliena, também está grávido
de utopia; o ordinário que nos acomoda, também pode ser o lugar da audácia e da
iniciativa.
No evangelho
de hoje, Jesus pergunta aos seus seguidores o que fazem de extraordinário. Isso
nos leva a pensar que o cristão deve ser aquele que tem atitudes
extraordinárias, comportamentos extraordinários, ações extraordinárias, etc...
Portanto, esta é uma das características do cristão: ser extraordinário. No
entanto, quando pensamos em “extraordinário”, pensamos em enormes obras, coisas
estrondosas, mirabolantes, etc...
O que é
“extraordinário”? A palavra nos sugere pensar o seguinte: “extra” +
“ordinário”. “Ordinário” é o que está na ordem do dia, nas regras, nos
comportamentos ditos normais de todos, na mesmice do dia a dia. Isto é o
ordinário: acordar, trabalhar, estudar, casar, comprar, consumir, morrer…
Milhões de pessoas passam a vida fazendo o ordinário. E simplesmente “passam”.
Aqueles que
fazem coisas “além desse ordinário”, ou seja, “extra”, são pessoas
“extraordinárias”. Portanto, tudo aquilo que vai além da normalidade, do
comportamento geral, isso é extraordinário. Dessa forma, tiramos do conceito de
“extraordinário” a necessidade de “coisas enormes”. Mas, coisas mais profundas,
com mais sentido, com “sabor diferente”, com “características diferenciadas”.
O seguimento
de Jesus é para aqueles que querem “algo mais”, que querem o “extraordinário”.
A espiritualidade é a contracorrente do ordinário. Se, de um lado, o ordinário
nos arrasta para a repetição e a conservação, de outro lado, a espiritualidade
nos impulsiona para a busca e a descoberta. Se permanecermos simplesmente no
ordinário, então nos tornaremos medíocres e nos contentaremos com o “menos”.
A
espiritualidade cristã é a espiritualidade do cotidiano, que conserva sua força
transformadora, que é capaz de despertar o espanto e a admiração, apontando
sempre para um horizonte mais amplo e mais rico; é a espiritualidade que
reacende desejos e sonhos novos, que suscita energias em direção ao mais; é a
espiritualidade que faz descobrir, escondida no ordinário, uma Presença
absoluta que nos envolve; é a espiritualidade que faz saborear o eterno e o
Absoluto no ritmo doméstico e cotidiano da vida... É a espiritualidade que
projeta a vida a cada instante; abre espaço à ação do Espírito para que Ele nos
expanda, nos alargue e nos impulsione para horizontes novos.
Uma pessoa
certa vez disse: “todos nós somos chamados a sermos santos; e santo não é
aquele que faz coisas extraordinárias, mas santo é aquele que faz as coisas
ordinárias de forma extraordinária”. Há aqui um sentido profundo: ser uma
pessoa “normal”, mas que faz tudo de forma extraordinária. Fazer bem as coisas,
com responsabilidade, com ética, com respeito, com justiça…
E temos muitas
pessoas extraordinárias no mundo hoje, felizmente. Ocorre que os grandes meios
de comunicação, ordinários (em todos os sentidos da palavra), não divulgam o
que elas vivem: não retribu-em violência com violência, são capazes de entregar
o manto e de não dar as costas a quem pede emprestado; amam os inimigos e rezam
por aqueles que as perseguem. Vivem de maneira extraordinária. Tais pessoas
fazem a diferença.
É a “mística”
que nos desperta da letargia do cotidiano. E despertos, descobriremos que o
cotidiano guarda segredos, novidades, energias ocultas, forças criativas... que
podem sempre conferir novo senti-do e brilho à vida. O Reino se revela no
pequeno, no anônimo, no ordinário e não só no espetacular, no grandioso. É o
cotidiano que nos prepara para as grandes decisões.
Na vida
cotidiana, as pessoas correm o risco de serem apenas imitadoras ou repetidoras,
pois temem se perderem na busca do novo; as respostas são confirmadas, mesmo
que estas sejam velhas e desfocadas e as perguntas são silenciadas. Fechado em
si mesmo o ordinário torna-se pesado, desinteressado e frustrado.
As “ações
cotidianas insensatas” podem ser “sensatas” (com sentido), se percebermos Deus
presente nelas. Descobrir a presença divina escondida no ordinário é
encontrar-nos acolhidos pelo abraço do Criador que nos envolve.
Falamos de uma
cotidianidade humana, isto é, daquelas atividades de nossa vida diária que,
embora irrelevantes em sua aparência, tem uma razão de ser, uma motivação e um
modo de serem feitas que não se deve à mera casualidade ou a um impulso
instintivo de repetição ou automatismo.
O cotidiano é
o que vivemos e/ou fazemos cada dia: o conjunto de circunstâncias, atividades e
relações que formam a trama da nossa vida através da qual Deus se revela
presente e atuante. Com essa inspiração, o cotidiano torna-se o “lugar” das
experiências.
É na realidade
diária que cada cristão é chamado a viver em comunhão com Deus e a deixar-se
conduzir pelo mesmo Espírito que animou Jesus e o levou a inserir-se na trama
humana, assumindo o risco da história. Ser cristão inserido no mundo, em meio
às agitações cotidianas, é acima de tudo ter Jesus como referência de vida:
suas palavras, suas ações, seu modo de relacionar-se com o Pai e com os
irmãos...
Quando a vida
cotidiana do cristão se torna monótona e se faz “normal”, é necessário
sacudi-la com algum “detalhe não-normal”, que ajuda para revigorá-la e dar-lhe
fecundidade.
Neste sentido,
os tempos de oração são os momentos privilegiados para que toda pessoa,
consciente de sua responsabilidade social e empenhada na transformação de seu
“entorno”, possa encontrar em sua vida cotidiana a fonte e sua fecundidade
transformadora.
Para meditar
na oração
O Espírito nos
faz abrir os olhos às realidades novas em nossa vida cotidiana; mas nossos
olhos somente se abrirão se formos fiéis à voz do Espírito nos simples atos de
nossa vida cotidiana. Suas atividades diárias formam parte do seu caminho para
Deus? Você tem consciência que cada dia é um “tempo de graça”? Você “apalpa” a
presença de Deus nas “rotinas diárias”?