29º domingo do tempo comum, Ano C 5

Roteiro Homilético 5: Dom Total
ORAÇÃO PERMANENTE E FÉ CONSTANTE


1ª leitura: (Ex 17,8-13) A força da oração de Moisés – Na batalha contra os amalecitas, quem decide da vitória não é Josué, o general, mas Moisés, o homem de Deus, que reza de braços estendidos desde a manhã até a noite. * Cf. Sl 44[43],2-9 * Amalec, cf. Gn 14,7; Nm 13,29; 24,20; 1Cr 4,42-43.


2ª leitura: (2Tm 3,14–4,2) Exigências do serviço da Palavra – A fé é uma graça de Deus, mas também algo que a gente aprende, tanto o conteúdo quanto a atitude. Isso vale sobretudo para quem tem responsabilidade na comunidade. Sua fé deve crescer pela leitura da S. Escritura, a experiência vital e a desinteresseira transmissão da Palavra, traduzida novamente para cada geração. A palavra de Deus atinge os homens através dos homens. Só o convicto consegue convencer. Daí a solene admoestação de 4,1. O Pastor eterno julgará por primeiro os pastores. * 3,14-17 cf. 2Tm 2,2; 1,5; Jo 5,39; 2Pd 1,20-21 * 4,1-2 cf. At 10,42; Rm 14,9-10; 1Tm 6,14; 1Pd 4,5; At 20,20-31.


Evangelho: (Lc 18,1-8) A oração insistente da viúva – Jesus ensinou a rezar pela vinda do Reino; mas quando esta se completar, na parusia do Filho do Homem, encontrar-se-á ainda fé na terra? (18,9; cf. 2Tm 4,1). Por isso, até lá, é tempo de oração. Devemos reconhecer a carência em que vivemos e assumi-la na oração insistente. Se não clamarmos a Deus para fazer justiça, sua vinda nos encontrará sem fé. * 18,1 cf. Lc 11,5-9; Rm 12,12; Ef 6,18; 1Ts 5,17.


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Como toda boa catequese, também a de Israel gostava de histórias que falassem à imaginação. Assim, a história de como Moisés conseguiu a vitória de seu general Josué sobre os amalecitas, os eternos inimigos de Israel (1ª leitura). Enquanto Moisés, segurando o bastão de força divina, ergue as mãos por cima dos combatentes, Israel ganha. Quando ele as deixa baixar, perde. Então, escoram a Moisés com uma pedra e sustentam-lhe os braços erguidos, até o pôr do sol, quando a batalha é decidida em favor de Israel. A história não diz o que significava o gesto de Moisés: oração, bênção sobre Israel ou esconjuro do inimigo. Mas, sendo Moisés o enviado de Deus, é evidente que se trata de uma maneira de tornar a força do Senhor presente no combate. O gesto pode bem significar que Deus mesmo é o general do combate. O próprio gesto de levantar as mãos indica o relacionamento com o Altíssimo. Levantar as mãos a Deus sem cansar, eis a lição da 1ª leitura. O salmo responsorial comenta, neste sentido, o levantar os olhos.


No mesmo sentido, o evangelho narra uma dessas parábolas provocantes bem ao gosto de Lc. Uma viúva pleiteia seu direito junto a um juiz pouco interessado, provavelmente comprometido com o outro partido. Porém, no fim lhe faz justiça, não por virtude, mas por estar cansado de sua insistência. Embora saibamos que Deus gosta de nos atender (não é como o juiz!), Jesus nos encoraja a cansar Deus com nossas orações! Mas, para isso, precisa fé. Ora, acrescenta Lc: será que o Filho do Homem encontrará ainda fé na terra, quando ele vier?...


Lc escreve no último quartel do século I. A fé já está enfraquecendo. A demora da Parusia, as perseguições, as tentações da “civilização” do Império romano, tantos fatores que colaboravam para enfraquecer a fé. Os cristãos, vivendo num mundo inimigo, esperavam a Parusia como o momento em que Deus faria justiça, já que eles eram pequenos e oprimidos. Seria o Dia do Senhor. Mas estava demorando! Rezavam: “Venha teu Reino!” (Lc 11,2). Mas também sabiam que é difícil aguentar a pressão: “Não nos deixeis cair em tentação” (Lc 11,4). Por isso, Lc pergunta: se continuar assim, não terão todos caído quando o Filho do Homem vier? Talvez uma advertência pedagógica, para insistir na necessidade de guardar a fé até que venha o Filho do Homem. 1Pd 3,9 está em voltas com o mesmo problema, mas oferece outra solução: Deus demora, porque está dando chances para a gente se converter.


A mensagem da 2ª leitura completa a das duas outras. Não apenas deve ser insistente nossa oração, não apenas devemos guardar a fé; devemos insistir também na pregação da própria palavra do Evangelho, oportuna ou inoportunamente! Alguns anos atrás, na crise da secularização, procurava-se não incomodar o homem “urbano moderno” com a expressão franca da identidade cristã. Acontecia que, ao se expressar prudentemente uma exigência cristã, o interlocutor respondia, com um sorriso de compaixão: “Eu achava que o senhor fosse esclarecido!” Melhor não ficar dando voltas e insistir, mesmo inoportunamente. O tempo é sempre breve. O homem moderno, mais do que secularizado, é sobretudo “objetivo”: gosta de saber logo qual é o assunto! Por isso, sejamos claros. Não se trata de fanatismo, que é disfarce da insegurança. A insistência que Paulo aconselha é a exteriorização da convicção (2Tm 4,2), sobretudo, porque o evangelho que ele propõe é o da “graça e benignidade de Deus, nosso Salvador” (Tt 3,4; cf. 2,11).


Para isso, é necessário que o evangelizador “curta”, pessoalmente, toda a riqueza da Palavra, a sua expressão nas Sagradas Escrituras – inclusive do Antigo Testamento, pois este fornece a linguagem em que Jesus moldou seu Evangelho. Tudo isso é obra do Espírito de Deus (2Tm 3,16).


A SAGRADA ESCRITURA


Antigamente os protestantes se distinguiam dos católicos porque “liam a Bíblia”, como se dizia. De uns tempos para cá, isso mudou. A Bíblia faz parte também do lar católico e, espera-se, não só para ficar exposta sobre um belo suporte de madeira entalhada... O Concílio Vaticano II nos exorta a ler a Sagrada Escritura, usando as mesmas palavras de Paulo na 2ª leitura de hoje: a Escritura “comunica a sabedoria que conduz à salvação”, “é inspirada por Deus e pode servir para denunciar, corrigir, orientar”.


Ora, essa recomendação de Paulo e do Concílio deve ser interpretada como convém. Não significa que cada palavrinha isolada da Sagrada Escritura seja um dogma. A Escritura é um conjunto de diversos livros e textos que devem ser interpretados à luz daquilo que é mais central e decisivo, a saber, o exemplo de vida e o ensinamento de Jesus. O centro e o ponto de referência de toda a Sagrada Escritura são os quatro evangelhos. Em segundo lugar vêm os outros escritos do Novo Testamento (as Cartas e os Atos dos Apóstolos), que nos mostram a fé e a vida que os discípulos de Jesus quiseram transmitir. A partir daí podemos compreender como a Bíblia toda deve ser interpretada, para ser “sabedoria que conduz à salvação”, tanto o Novo Testamento como o Antigo (ou Primeiro), que nos mostra o caminho de vida que Jesus, como verdadeiro “filho de Israel”, levou à perfeição.


A recomendação de Paulo significa que a nossa fé deve ser entendida à luz das Escrituras. Jesus usou as palavras do Antigo Testamento para rezar e para anunciar a boa-nova do Reino. Sem conhecer o Antigo Testamento, não entendemos a mensagem de Jesus conservada no Novo. Jesus é a chave de leitura da Bíblia. Isso é muito importante para não fazermos de qualquer frase do Antigo Testamento um dogma definitivo! A lei do sábado, por exemplo, deve ser interpretada com esse profundo senso de humanidade que tem Jesus. As ideias de vingança, no Antigo Testamento, à luz de Jesus aparecem como atitudes provisórias e a serem superadas. Todos os trechos da Bíblia, por exemplo, as parábolas de Jesus, devem ser entendidos dentro do seu contexto e conforme seu gênero e intenção. Não devem ser tomados cegamente ao pé da letra. Muitas vezes apresentam imagens que querem exemplificar um só aspecto, mas não devem ser imitados em tudo.


Também importa ler a Sagrada Escritura no horizonte do momento presente, interpretá-la à luz daquilo que estamos vivendo hoje. Sem explicação e interpretação, a Bíblia é como faca em mão de criança, ou como remédio vendido sem a bula: pode até matar! Ora, a interpretação se deve relacionar com a vida do povo. Por isso o próprio povo deve ser o sujeito desta interpretação, mediante círculos bíblicos e outros meios adequados.


(O Roteiro Homilético é elaborado pelo Pe. Johan Konings SJ – Teólogo, doutor em exegese bíblica, Professor da FAJE. Autor do livro "Liturgia Dominical", Vozes, Petrópolis, 2003. Entre outras obras, coordenou a tradução da "Bíblia Ecumênica" – TEB e a tradução da "Bíblia Sagrada" – CNBB. Konings é Colunista do Dom Total. A produção do Roteiro Homilético é de responsabilidade direta do Pe. Jaldemir Vitório SJ, Reitor e Professor da FAJE.)